Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

quinta-feira, 5 de junho de 2008

MISTÉRIO DE UMA MORTE OU UM FILHO DESNATURADO


Há mais de sessenta anos, uma mulher, vivendo a força da juventude e do seu amor, embarcava no paquete Serpa Pinto, que estava fundeado no porto de Ponta Delgada.
O destino era Lisboa, onde a esperava o pai dos seus filhos, duas crianças de tenra idade que viajavam com ela. Levava o propósito de se unir àquele homem pelos laços do sagrado matrimónio, e fixarem-se depois em Angola.
A infeliz não conseguiu realizar este sonho. Morre com o vapor a navegar e o corpo é lançado ao mar.
Na altura, o Serpa Pinto era o melhor navio de passageiros da nossa marinha mercante. A sua lotação abrangia médico e enfermeiro. A bordo, está apurado que ia tropa. E fala-se num efectivo de dois batalhões do Exército, que regressavam ao continente, terminada a sua comissão nos Açores. Ora as unidades militares daquela dimensão têm corpo clínico.
Houve autópsia? --- Não se sabe. O certo é que, nas Conservatórias, nem registo do seu óbito aparece.
Toda a história, que rodeia o fim desta desgraçada, está coberta por um véu muito espesso. Foi natural a morte daquela mulher? --- Pelos indícios, que até agora colhi, é perfeitamente legítimo concluir que ela morreu violentamente e que a causa mortis não terá sido acidental. Daí, o interesse em fazer desaparecer o corpo.
De resto, outra dúvida terrível se levanta: oficialmente, ela terá embarcado?
Algo me diz que, ao subir as escadas do portaló, a pobre carregava já a sentença da morte que veio a sofrer.

 
P. 408/03.0 TADL

 
ALEGAÇÕES APRESENTADAS EM JUÍZO
 
Venho perante este Tribunal, porque aparentemente ofendi o assistente na sua honra e respondo, ainda, como presumido autor de um crime de ameaças.

O assistente, num completo desvario e, ao mesmo tempo, com algum sabor patético, sustenta que me estou preparando para violar gravemente a lei, agredindo-o até à morte (fls. 110 dos autos). Imagine-se, só! Uma morte assim infligida assume proporções da mais fria e requintada crueldade.

Sou, com certeza, um malvado sem entranhas e totalmente desprovido de sentimentos humanos. Não vou desferir, sob o impulso de ira cega e desmedida, um golpe mortal; hei-de comprazer-me num processo demorado, gozando a lenta agonia que precederá o estertor final do assistente. Isto até arrepia!

Mas, afinal, onde se encontra escondido esse pérfido plano? Numas expressões que o assistente alinhou, uma delas sem nenhuma preocupação de rigor textual, se é que isso não foi deliberadamente querido. Tão insubsistentes eram essas expressões que até o Ex.mo Magistrado do MP as não levou em conta (fls. 100 e s. dos autos), vindo só a acusar depois «no estrito dever de obediência hierárquica» (fls. 124 e s. dos autos), e limitando-se a imputar-me, muito latamente, a prática de um crime de ameaças (ib.). E a decisão instrutória, de forma igualmente imprecisa, veio confirmar esta acusação. Motivo pelo qual desenvolvo a minha defesa começando por impugnar este ataque, que é indisputavelmente o mais grave.

Sou, pois, acusado de ameaçar de morte o assistente. Santo Deus! Onde está essa ameaça? Não há, em todo o texto da carta nada que autorize essa conclusão. Só o delírio do assistente foi capaz de descortinar tal propósito.

A acusação particular entrou neste Tribunal em 22SET04. É uma deturpação grosseiríssima da letra e do espírito da carta que remeti ao assistente. Lembro, entretanto, que essa carta foi escrita em 31JUL03 e o assistente continua a sua vida, dentro da normalidade para uma pessoa doente e com a sua idade. E se eu andasse, pelo menos desde então, possuído por um instinto homicida, não me faltaram ocasiões para já me ter cevado no sangue do assistente. A partir do envio da carta, vim a S. Miguel as vezes suficientes para o matar, se essa fosse a minha vontade.

Contesto, assim, a acusação de ameaça de morte, porque ela é perfeitamente descabida. Mas, se este Tribunal achar que essa acusação procede, seja-me permitido tecer umas breves considerações:

Duas são as vias pelas quais se pode chegar ao homicídio:

Assiste-se à primeira, quando uma pessoa, socorrendo-se ou não de qualquer meio letal, dá morte a outrem. A segunda ocorre sempre que, através de um comportamento activo ou omissivo, se leva alguém, pelo desespero, pela exasperação, pela exaustão económica ou ainda por outra causa, atípica mas relevante, se atira com essa vítima, para uma situação que pode ser mortal. E esta última via denuncia uma malvadez de índole muitíssimo maior porque há contumácia na sua execução.

Pergunto, pois:

Neste processo, quem pisa os trilhos de um homicídio planeado? --- Eu, ao dizer que, se o assistente persistisse no comportamento, que vinha e vem assumindo, e eu não pudesse, em tempo útil, aguardar remédio por parte dos órgãos coercivos normais, actuaria directamente, sem nunca esquecer o princípio da proporcionalidade (fls. 4 dos autos)? Ou o assistente, que teimosamente contribui para um quadro que me é hostil?

Recordo, mais uma vez: tanto se pode ser matador, quando se dispara um tiro, se enterra uma faca, se dá uma pancada, se propina veneno, como quando se tira o pão da boca a alguém. Shakespeare, numa das suas peças mais conhecidas --- The Merchant of Venice --- põe, na boca de uma das suas personagens, esta memorável sentença: «(...) you take my life/When you do take the means whereby I live.» (Op. cit., The Complete Works of William Shakespeare, Spring Books, 20th impression, 1981, Act IV, Scene I).

Por isso, volto a inquirir:

Quem é, aqui, o criminoso? --- Eu, que apenas preveni para um acontecimento futuro e incerto, ou o assistente que, in actu, me vinha e vem lesando porfiada e gravemente? Eu, que falei na hipótese remota de recorrer a meios, admitidos em direito, desde que observados todos os pressupostos legais, ou o assistente, há muito com uma atitude destrutiva e profundamente nefasta, que se esconde atrás de subterfúgios de duvidosa legalidade e, muito provavelmente, de nenhuma justiça?

Pelo que até agora expus, infere-se o seguinte:

Do meu lado, não sabia nem podia saber se acabaria por lançar mão de medidas mais extremas, e sempre desejei não ser levado a isso, como, de resto, sucedeu até ao presente; entretanto, o assistente deu a entender que era sua convicção, firme e segura, que eu o mataria. Repiso: não sei como foi possível tanta certeza, por parte do assistente, sobre o comportamento que eu iria adoptar, quando eu próprio desconhecia se viria a tomar alguma atitude. Não compreendo francamente o seu receio, a menos que tivesse o propósito de continuar, isoladamente ou acompanhado, numa via adequada a lançar-me na mais completa miséria, intervindo numa luta que lhe é estranha, conforme ele já tem dito, mas na qual contraditoriamente se foi imiscuindo.

E, não satisfeito com os prejuízos que me vem causando, os quais, diga-se de novo, fazem perigar a minha subsistência, o assistente ainda me acusou de ameaças contra os seus bens (fls. 109 dos autos). Não há, em toda a carta da minha autoria e da qual ele se socorreu para esta acção, uma única palavra que possa servir de suporte a esta acusação. Registe-se, aqui e apenas, o cinismo do assistente. É o retrato, a corpo inteiro, de quem faz o mal e a caramunha.

Isto, que não me parece ter justificação, explica-se, contudo, se nos lembrarmos que estamos diante de uma situação melindrosa, com a qual o assistente não sabe lidar. Ele intuiu que podia ser um dos vencidos, nas plúrimas batalhas judiciais, que se vêm desenrolando, se, pela asfixia económica, não conseguisse anular-me antes de os tribunais proferirem as suas sentenças. Por isso, com recusas e indefinições, foi precipitando a crise que me aflige.
 
Em suma e limitando-nos ao que, neste segmento da acusação, foi por mim anunciado:

Eu escrevi que, se o assistente teimasse em criar-me dificuldades, a ponto de me pôr em situação crítica, e, nesse meio tempo, os conflitos judiciais não estivessem resolvidos por parte dos órgãos institucionais, então, era natural que eu procedesse em conformidade com o instituto da autotutela dos direitos. A isto e apenas a isto se reduz a alegada ameaça por que respondo.

Mais tarde, já na decisão instrutória e para mostrar o critério que determina a idoneidade da ameaça, vem citado o conhecido penalista Taipa de Carvalho. É pena que a M.ma Juíza, autora dessa decisão, não tenha recuado na obra consultada. Porque, se o tivesse feito (e bastaria vir atrás umas escassas quatro páginas), deparava com o seguinte: «(...) o mal ameaçado tem de configurar, em si mesmo considerado, um facto ilícito típico (...). Escusado será dizer que não se verifica este elemento, quando o 'mal ameaçado' se refira e circunscreva a um contexto justificante: p. ex., A jura a B que, da próxima vez que este o agrida, reagirá à agressão, mesmo que o tenha de matar; com efeito, mesmo que o A dissesse que, se B o voltasse a agredir, o mataria (mesmo que tal não fosse indispensável para a sua defesa), deveria entender-se que esta ameaça não seria senão uma forma de dissuadir o agressor da repetição da agressão, sendo, portanto, socialmente adequada uma tal ameaça.» (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra Editora, 1999, pp. 344 e s.).

Reitero que não ameacei de morte o assistente. Tão-pouco fui ameaçado de morte por ele. Tenho sido, isso sim, vítima de actos que fazem perigar a minha sobrevivência. E, nesses actos, tomou e continua a tomar parte o assistente. Mas se assim não for entendido, valha a lição de Taipa de Carvalho: se, no quadro acima descrito, é socialmente adequada a ameaça de A a B, por ser justificante o contexto a que se refere e circunscreve o 'mal ameaçado', com identidade de razão se há-de considerar justificante o cenário em que eu escrevi as pretensas ameaças de morte. O mal, que o assistente me causa, não é certamente inferior ao que resultaria de uma típica agressão física.

E ameaças de menor mal, houve? --- Para responder a esta interrogação, nada melhor que começar pela acusação do MP para acabar ligando-a à que foi formulada, no termo da instrução.

Vejamos, então, o que diz o MP. Antes, porém, e com todo o respeito, tenho de confessar que ler a primeira acusação deste órgão (fls. 101 e ss. dos autos) e olhar agora esta, é desconcertante. Todavia, bem ou mal deduzida, tenho uma acusação pela frente e, portanto, vou rebatê-la. Com alguma difIculdade, é certo, porque não tem a tarefa simplificada quem responde a argumentos privados de espontaneidade, uma vez que foram alinhados no estrito cumprimento do dever de obediência hierárquica e que, por isso mesmo, aparecem como argumentos de fraca ou mesmo de nula convicção. É uma acusação redigida em termos vagos e imprecisos, à qual respondo discorrendo com uma acentuada nota de generalidade e abstracção. Foi a forma que encontrei para abranger na minha contestação toda a acusação deduzida --- a que está expressa e a latente. Não significa isto que, por tal razão, eu deixe de tocar em pontos concretos da matéria de facto realmente vivida. De resto, com isto não faço mais do que o exigido a quem oferece uma refutação jurídica.

Assim, pergunto:

Estaria eu proibido de negar ao assistente o meu consentimento para a separação de empresas, objectivo que muito apeteceu e que não conseguiu porque esbarrou na minha resistência? É-me vedado o caminho de o denunciar pela eventual prática de um ilícito fiscal, como aconteceu em 25SET06? Não posso, por acaso, alhear-me de um negócio que ele continua a perseguir encarniçadamente e, com esse afastamento, anular os seus projectos de um dourado lucro, de que eu não veria migalha? Estou privado de lhe comunicar que exerceria o direito de preferência sobre umas quotas que ele queria transmitir para fora da sociedade, a que ambos pertencemos? E quando esta vontade o obriga a declarar um preço superior, com as consequentes repercussões fiscais, não é visível em tudo isto o castigo por mim anunciado (fls. 4)? Será muito difícil compreender que estão aqui os custos pelo comportamento do assistente junto de mim? E, consequentemente, não seria por isto que eu escrevi que agredir o mundo lhe iria sair caro (fls. 3 dos autos)? É que quem agride o mundo, agride-me a mim (já que todos fazemos parte do mundo) e quem me agride, anda mal se espera que eu fique de braços cruzados.

É, acaso, crime de ameaça avisar o assistente de que agravaria a sua situação, se não abandonasse o rumo até então seguido (fls. 4 dos autos)?

E para o caso de não me ser feita justiça em tempo útil, anunciar que passaria à acção directa, também não é permitido pela lei? --- Se o contrário se concluir, risque-se dos códigos uma das formas da autotutela dos direitos. Ou aceitemo-la com algumas reservas: está bem, a lei deixa, mas não é assim tão universal como parece, porque só funciona para alguns e não vale contra todos!

Saltei, intencionalmente, o castigo que o MP diz que eu reservo para o assistente. Adivinha-se terrível esse castigo. De tal modo, que a M.ma Juíza de Instrução, de todas as ameaças de que me acusa o MP, só me pronunciou por esta que eu, pelos vistos, guardo zelosamente para aplicar não sei quando, nem onde, nem como, porque ninguém tem a caridade de mo dizer!

Mas não é evidente essa ameaça? Evidente, salvo o devido respeito, é a ligeireza com que o MP me atribui «uma promessa de agressão físíca, idêntica (porém mais severa) a uma anterior (...)» (fls. 125 dos autos). Sempre com o mesmo respeito, igualmente evidente é a fragilidade do texto da pronúncia e a precipitação dos juízos ali contidos (fls. 262 dos autos), no que concerne ao mal físico alegadamente anunciado por mim.

O que eu escrevi e ficou esquecido, numa e noutra das passagens agora lembradas, foi o seguinte: «Não fora isso e o levíssimo cumprimento, que lhe fiz o ano passado, no jardim Sena Freitas, há muito teria sido antecipado e com outra intensidade.» (Fls. 4 dos autos).

Não fora isso, o quê? --- A oposição de meu Pai, bem patente quando, um pouco acima, eu deixei registado: «Valeu-lhe, fique aqui sabendo, ter-me meu Pai proibido de tirar desforço das vilezas de V. Ex.ª (...)» (ib.). E teria sido, isso o que é? É uma forma verbal do futuro do pretérito composto. Ora bem, na opinião de dois abalizados gramáticos da língua portuguesa, este tempo usa-se «para indicar que um facto teria acontecido no passado, mediante certa condição» ou «para exprimir a possibilidade de um facto passado». (Celso Cunha e Lindley Cintra --- Breve Gramática do Português Contemporâneo, Edições Sá da Costa, 1.ª ed., Lisboa, 1985, p. 333). (O sublinhado é meu).

Explicado fica o que me parecia de meridiana clareza. O castigo físico teria certamente acontecido no passado, se não fosse a resistência que encontrei na pessoa de meu Pai.

E que castigo é esse, ao qual me referi quando disse: «(...) o castigo, que não lhe dei porque meu Pai me impediu, vai recebê-lo agora (...)» (fls. 4 dos autos)? Será assim tão difícil aceitar que esse castigo são os custos que o assistente suporta quando eu não consinto nos seus manejos comerciais e o denuncio perante as autoridades? Ou só há castigo como resultado de golpes físicos que se desferem? Haja um pouco de equilíbrio, que tanto bastará para olhar com lucidez o caso que aqui se julga. Onde é que ameacei o assistente com a prática de qualquer dos males previstos no CP art. 153.º? E só esse comportamento, que eu não tive, é que prefigura uma ameaça criminosa.

Analisemos, agora, as alegadas ofensas à honra. São estas: afirmei que o assistente age por mesquinhez e baixeza de carácter; que está marcado pelas tristes condições do seu nascimento; que teve um casamento desgraçado; e que comete vilezas (fls. 109 dos autos).

Desta lista, que o assistente enunciou, transmito para final o que se prende com as condições do seu nascimento. Por ora, defendo-me apenas das outras acusações. Assim, direi:

Quando afirmo que o assistente age por «mesquinhez e baixeza de carácter», não vejo francamente onde esteja a ofensa. Mesquinhez, entre vários sinónimos, também significa desdita. Fosse esta palavra necessariamente ofensiva e o grande Camões ter-se-ia mostrado pouco galante ao referir-se à «linda Inês» (Lus. III, 120, v.1 ), como a «mísera e mesquinha/Que depois de ser morta foi Rainha.» (ib. 118, vv. 7-8). Por outro lado, se acusar outrem de baixeza de carácter não é elogio, nem por isso constitui ofensa. Baixeza, com efeito, tem vários sentidos, um dos quais é inferioridade, pelo que a expressão proferida envolve uma apreciação negativa, mas, insisto, não pode ser tomada como insulto.

A respeito do «casamento desgraçado», limito-me a perguntar que outro nome se pode dar a um casamento que acaba em divórcio (fls. 310 dos autos). Será que as pessoas se divorciam, quando vivem um casamento venturoso? É verdade que, nos dias que correm, a lei facilita enormemente a dissolução do vínculo conjugal. Se o motivo para divórcio, entre o assistente e a sua mulher canónica, foi mera diversão, então teríamos que a locução «casamento desgraçado» traduziria uma qualificação desajustada, uma tolice à dimensão da causa leviana do divórcio, mas injúria é que nunca.

Falta o ter eu escrito que o assistente comete vilezas. Esta imputação prende-se com as atitudes que o assistente tomava relativamente a meu Pai, numa altura em que este já contava mais de oitenta anos. Creio que ninguém sustentará que se enriquece eticamente quem doesta e atormenta uma pessoa com aquela idade, tanto mais tratando-se de um tio.

Passo, agora, à parte mais melindrosa da acção sub iudicio:

O assistente, procurando emoldurar o pedido cível para com ele se regalar um pouco mais, à minha custa, o assistente, repito, acusou-me de divulgar uma mentira (fls. 110) .

Que mentira? O assistente, muito dentro do estilo que o caracteriza, não diz onde foi que eu menti. Vou, com base num raciocínio especulativo, tentar pôr alguma ordem nisto:

Do libelo acusatário produzido pelo assistente contra mim, ressalta uma imputação de factos e o resto são juízos de valor. Com estes não vale a pena gastar tempo a avaliar se são verdadeiros ou falsos, porque se forem ofensivos não admitem prova da verdade. Logo, o assistente deve estar a reportar-se à questão de que agora vou tratar --- as tristes condições do seu nascimento. É de uma infelicidade pasmosa. Não o tivesse feito e eu não estaria aqui, como agora estou, a socorrer-me da exceptio ueritatis, defesa que, de outro modo, me seria vedada por «se tratar de um facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.» (CP art. 180.º, n.º 3).

Ao mesmo tempo, e como já se referiu, o assistente junta a nota da publicidade à mentira que me atribui. Onde vê ele a divulgação? --- A minha carta foi-lhe directamente enviada. E dela dei conhecimento ao que era administrador-delegado da GALP ENERGIA junto da SAAGA, S. A. (fls. 110), o qual estava e está legalmente impedido de usar da mesma, em termos que contrariem a minha expectativa (CC art. 78.º). Não houve, pois, nenhuma divulgação, pelo menos da minha parte.

Esta circunstância agravante de crimes contra a honra não foi acolhida nem pelo MP nem pela M.ma Juíza de Instrução, dizendo mesmo esta Ex. ma Magistrada, no que concerne à publicidade da ofensa, que «(...) nada nos autos permite sustentar que o tenha sido, pelo que os indícios apontam para o tipo base.» (Fls. 263 dos autos).

Esclarecidos estes pontos, entro no núcleo da questão:

Ao escrever que o assistente estava «marcado pelas tristes condições do seu nascimento», apenas quis aludir ao facto de ele ter nascido fora do matrimónio, num meio social e cultural de moral extremamente rígida. Fi-lo sem o menor desejo de atingir o Pai do assistente e muito menos a Mãe, pessoa que nunca conheci porque morreu nem eu era nascido.

Hoje, interrogo-me seriamente se tornaria a escrevê-lo. Não pelo suposto agravo recebido pelo assistente, mas porque eu próprio experimentei um abalo profundo com o que apurei. O principal, aquilo que realmente interessava trazer aos autos, depois do dislate em que o assistente me acusa de mentir, isso ficou demonstrado por certidão que juntei, na contestação oferecida (fls. 307 a 310 dos autos). Quanto ao mais, a tarefa não é para mim. O choque sofrido, à vista dos indícios de não ter sido natural a morte da Mãe do assistente, foi violentíssimo e eu não quero prosseguir nas averiguações.

Porém, outras são as responsabilidades do assistente. E, se não é capaz de as assumir, isso só vem confirmar o facto por mim relatado: as marcas que lhe deixaram as condições do seu nascimento, em virtude de ser «(...) a Mãe solteira fonte de infortúnios inevitáveis e de tristezas sem conta (...)», segundo palavras do seu próprio mandatário (fls. 312 dos autos). Tudo isto rematado por outras circunstâncias que eu, antes deste processo, nem sequer imaginava. Fui-me inteirando delas, à medida que preparava a defesa contra esta delirante acusação.

Fosse qualquer mãe a maior megera do mundo que, mesmo assim, filho digno desse nome, não deveria dispensar os seus apelidos e, principalmente, deixar o episódio da sua morte nas fronteiras do desconhecido e na penumbra de um denso mistério. E era má mulher, a Mãe do assistente? Não o creio! Pois é, por ventura, mãe desnaturada a mulher que, na flor da idade, volta costas ao terrão natal e morre quando, na companhia dos filhos que concebeu, parte ao encontro de uma felicidade legítima, junto do homem de quem os teve?

Mais uma vez refiro que nada sei do seu passado, a não ser isto. Agora, acrescento apenas que ela se agigantou pelo muito amor, de que deu provas. Mas o apreço que tenho pela grandeza daquele coração de mulher, converte-se em repúdio para com o filho, que não usa o nome dela e, que se saiba, nunca ofereceu, a sua pobre Mãe, a esmola de um epitáfio.

Não há registo do óbito da Mãe do assistente nem na Povoação, concelho da sua naturalidade, nem em Ponta Delgada, lugar do seu último domicílio antes do embarque para a viagem fatal. Na Conservatória dos Registos Centrais também nada consta sobre a sua morte, assim como não se encontra notícia de qualquer inventário orfanológico. Pelo que, dentro de um estrito rigor jurídico, dela não se sabe se morreu ou se ainda vive. Infelizmente, desta vez, «quod fuit in mundo, non est in actis». Só persiste o enigma de como foi a sua morte.

Toda esta tragédia impunha ao assistente comportamento bem diferente, em vez de se sentir ofendido por uma injúria que não lhe fiz. Realmente, não sou capaz de compreender um filho que nega, à memória de sua Mãe, um direito que é correlativo ao direito de nascer --- o direito que tem qualquer pessoa, terminado o seu trânsito neste mundo, de estar morta à face da lei!

Na verdade, se a personalidade jurídica se adquire à nascença (CC art. 66.º, n.º 1), cessando com a morte (ib., art. 68.º, n.º 1), ficamos todos obrigados a observar os dois momentos enunciados. E esse respeito passa pela declaração formal de um e de outro, o que, quanto ao último deles, não aconteceu com a Mãe do assistente. Nesta omissão é que há agravo, e por esse agravo, intenso e contumaz, não sou eu o responsável. O culpado é o assistente, filho daquela desgraçada criatura. E culpa maior tem, ainda, por não investigar as circunstâncias da morte de sua Mãe.

A única atenuante, que lhe encontro, reside unicamente na falta de nervo para tão espinhosa missão. Porém, se assim é --- e como atrás já frisei --- tem de se concluir que é um homem muito amolgado pelo sucedido. Para o que, reconheço, lhe sobram razões. Mas isso só vem ratificar a minha análise sobre as condições do seu nascimento. É que essas condições traçaram o período que vai do berço até ao dia em que o assistente perdeu a Mãe, projectando-se muito para além disso. Ainda hoje, as marcas deixadas são perceptíveis e a prova está diante dos nossos olhos --- ela vê-se no comportamento actual do assistente!

Avivar uma recordação pungente é, por certo, violento. Seria desejável que não acontecesse, mas, quando ocorre, não constitui necessariamente crime. No caso dos autos, as palavras, em que aludo ao nascimento do assistente e que ele tem por insultuosas, não são ofensivas da sua honra porque lhes falta tipicidade jurídico-penal.

Nem tudo o que dói, transporta uma injúria. Assim estamos com a frase de que o assistente se queixou. O juízo, ali contido, independentemente do seu acerto ou desacerto, não é, de modo nenhum, o mesmo que insulto. E isto, ainda que houvesse o propósito de magoar. Seria, então, de uma imensa desumanidade, mas não é crime de ofensa à honra.

Chegou a altura de sublinhar que, à argumentação discursiva já desenvolvida apenas com base na dogmática do direito ordinário, acresce ainda uma razão de ordem superior. A questão sobe a um plano que é o da Constituição. Aí, dispondo a nossa Lei Fundamental que «os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação (...)» (ib., art. 36.º, n.º4), concluir que as minhas palavras, à volta das condições em que o assistente nasceu, preenchem o crime de injúria, julgar deste modo, insisto, envolve uma diminuição da dignidade dos filhos nascidos fora do casamento, em confronto com os que nascem dentro dele. O que, salvo melhor opinião, é manifestamente violador do espírito e da letra da Constituição (art. 13.º, n.º 1; art. 36.º, n.º 4)!

Se, apesar de quanto aqui expus, este Tribunal achar que há ofensa naquilo que escrevi, valha-me então a tese de que «esta ofensa não tem, pois, qualquer feição especial, sendo considerada idónea ou bastando para a justificar qualquer conduta censurável do ofendido, quer esta seja criminosa ou não, intencional ou culposa», conforme se expressam Leal-Henriques e Simas Santos (O Código Penal de 1982, vol. 2, Rei dos Livros, Lisboa, 1986, p. 226).

Recapitulando e concluindo:

Não ameacei o assistente de morte nem de qualquer outro mal. Com efeito, não há nos autos nem se logrou provar nesta audiência de julgamento a existência do elemento objectivo daquele tipo legal de crime. Mesmo que se persista em julgar o contrário, isso terá de considerar-se justificado à luz da lição de Taipa ele Carvalho.

Também não ofendi o assistente. A carta alegadamente injuriosa --- e à qual não dei qualquer publicidade --- pode ser olhada como um documento severo e duro, mas severidade e dureza não são, automaticamente, elementos constitutivos dos crimes contra a honra. Contudo, porque pode este Tribunal assim não o entender, invoco de novo, em meu auxílio, a opinião acima transcrita da autoria de Leal- Henriques e de Simas Santos.

Por fim, penso que a indemnização pedida não deve proceder, pela razão comezinha de não ter havido crime nem prática de qualquer outro ilícito que me possa fazer incorrer em responsabilidade.


JUSTIÇA!

Joaquim Maria Cymbron
 
NOTA FINAL:
Conforme eu anunciara, em seguida ao texto publicado a 02DEC07 (data originária), aqui se inserem as minhas alegações de defesa num processo para o qual fui atirado por alguém de temperamento psicótico, índole retrincada e uma profunda cegueira, que o impede de ver que não passa de um joguete nas mãos de um advogado medíocre e sem carácter.
O julgamento realizou-se na minha ausência, graças à decisão arbitrária de uma Juíza, que me denegou a possibilidade de estar presente, impedindo-me assim de exercer, em toda a plenitude, os meus direitos de defesa.
Certamente, não ficaremos por aqui. A sentença está marcada para 06FEV08. Aí se saberá como proceder!
28JAN08 (data originária)
JMC