Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

domingo, 23 de março de 2014

NAPOLEÃO, O JUIZ


«... Napoleón ha sido la Francia hecha hombre para propagar la idea revolucionaria.» (1) 
O Juiz, a que aludo, não é esse Napoleão. Realizar o que Bonaparte levou a cabo, não está ao alcance do primeiro que resolve puxar a marrafa para a testa. Toda a obra requer arte. Mesmo quando vem trazer a desgraça aos povos, como foi no caso do Tigre da Córsega e que não é o que se passa com o Napoleão, de que trato, a quem falta talento e dimensão. Este, e outros da sua igualha, não deixam obra atrás deles: o mais que vão fazendo, enquanto vivem, são garatujas.
Já disse que o "herói" deste conto não é Napoleão, o guerreiro que assolou a Europa. Mas é Juiz! Será que isso chega para abonar alguma qualidade? Num tempo em que andam, por aí, uns que se enfeitam com esse título, outrora respeitabilíssimo, e que, por pouco, não ascendiam a essa posição através de fraude, temo sinceramente que a resposta a dar só possa ser negativa.
 

Ex.mo Sr. Juiz-Presidente do Tribunal Judicial de X 

M.mo Juiz

As meias, que enviei à M.ma Juíza Dr.ª N. (uma das quais tinha outra destinatária), foram declaradas perdidas a favor do Estado. E ainda se teima em censurar-me por alegar que, no meio da iniquidade, é com frequência que arranjo modo de sacar algo do que parece vir contra mim. Daqui não há saída: ou eu era absolvido e ficava com as meias; ou sofria uma condenação e dizia-lhes adeus. Que mais podia eu ambicionar do que ofertar aquele lindo par ao Estado, esse ente de bem, sempre tão escrupuloso com a fazenda de cada contribuinte?

Mas se é grande a minha satisfação pelo desfecho das meias, assim estou inquieto pela sorte que levou a tenda de campismo, lançada no parque das traseiras desse Tribunal. E acima disto, preocupa-me não saber se a bomba foi desactivada sem perigo.

Com os meus respeitosos cumprimentos,
 

Joaquim Maria Cymbron
 
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1.      Donoso Cortés --- Discurso sobre la dictadura.

 

 JMC

quinta-feira, 13 de março de 2014

A GRANDE OFENSA


V. Ex.ª está satifeita? Eu, não! E nem se prende com a condenação. Condenações, há muito que fazem parte do meu quotidiano.

O que me contraria é a dúvida de não saber se a pretensa ofensa, de que V. Ex.ª se queixou, tem a ver com umas toscas meias, em vez de um bonito conjunto de meias de seda e cinto de ligas. Isso era de realização impossível. São três as razões que o impediram: a primeira, e que é a mais importante, por decoro moral; vem depois o motivo económico, o qual se reconduz a que um presente daquela categoria há-de ser caro e, na algibeira, eu não tenho sequer um cêntimo para luxos; por fim, a noção estética, de que não me acho desprovido, a qual me diz que essa oferta de nada serviria a V. Ex.ª

Não pude avistar V. Ex.ª, ainda que fosse num relance virtual, na memorável jornada recentemente vivida bem perto do sítio, onde V. Ex.ª derrama abundantemente os tesouros da sua imensa ciência jurídica. Creia, Meritíssima Juíza, que eu teria o mais subido gosto em tal momento, e essa hora seria, para mim, motivo de um grande orgulho. De facto, nem todos os dias pode um celerado da minha dimensão gozar tão insigne honra. Assim perdi uma inquirição que, a avaliar pelo percurso seguido desde que os fados ditaram que se cruzassem os nossos caminhos, se terá certamente pautado pelo primor jurídico que distingue V. Ex.ª e com o qual, há tanto tempo, me venho deliciando.

Quando V. Ex.ª depôs, ainda eu estaria pelo aeroporto, acabado de desembarcar.  Negar-me o já confessado prazer de a ver, foi uma peça que me pregaram. Não estarei, contudo, a ser demasiado severo?  Se calhar não foi por pirraça que não se esperou a minha chegada a tribunal, recebendo eu apenas a paga que o meu atraso mereceu. Está visto que os Açores, fustigados por aquele bravio temporal que os assolou na véspera do julgamento, têm sobejas razões de queixa contra mim, porque manifestamente fui eu quem desencadeou a fúria dos elementos.

Descontada, porém, a volúpia de que fui privado quando me tornaram impossível vislumbrar a gentilíssima figura de V. Ex.ª, seria pouca a utilidade que eu tiraria por estar presente. Com efeito, a acção que me foi instaurada pelo envio das meias (crime abominável, não tem que ver), essa acção, repito, esteve toda ela dominada pelo propósito bem definido de realizar a mais límpida e densa justiça. Isto basta. Para quê, pois, atender a formalismos processuais, autênticas minúcias como seja exemplo o de tomar declarações à ofendida sem a presença de um arguido ausente porque quis?

Deixemo-nos de futildades! Por isso é que a Justiça emperra e não anda. E vêm uns tantos, contando-me eu entre eles, deitar culpas sobre parte da Magistratura. Que tamanha crueldade! Sou obrigado a passar em revista toda a minha posição nesta matéria e, parafraseando Fradique Mendes numa das suas cartas (1), exclamo ao mesmo tempo que bato no peito: Esta mediana gente, no meio da qual tenho andado e partilhado tão injustos preconceitos, nunca compreenderá a imensa virtude de todos os nossos Magistrados!

Sou ainda servido de informar que um M.mo Colega de V. Ex.ª, na comarca que foi palco da farsa que trato, me fez saber que não andam os tribunais a reboque de mim, mas que deve ser o contrário. Veja bem: eu, que imaginava ser obrigação de todos irmos a reboque da lei, ao ouvir tal sentença, sofri um rude golpe. Cheio de zelo, quis ainda o Senhor Juiz continuar a catequizar-me, dizendo que ali eu nada mandava. Fiquei muito triste, conforme é de calcular. No entanto, por não comungar da religião de que ele é apóstolo, respondi-lhe que tanto como ficara ciente de que não viriam os tribunais ter comigo, assim estivesse ele certo de que eu não me deixaria arrastar por nenhum tribunal e que, se continuasse a pregar, valeria o mesmo do que falar para uma parede. Mas é óbvio que agi assim só para o arreliar. Entretanto e apesar de eu estar acatando a ordem de abandonar a sala, nela entraram dois agentes da PSP, o que provocou feíssima reacção da minha parte. Imagine só --- lancei em rosto ao M.mo Colega de V. Ex. que, nestas lides, só me causará pejo ser visto no meio de alguns Magistrados e nunca o de estar custodiado pela polícia!

Deste incidente, não dá conta o suporte digital do acto judicial então realizado. Desapareceu ou, muito oportunamente, não chegou a existir. De resto, a sua audição é muito imperfeita. Daquele que devia trazer-nos o registo do julgamento do crime nefando, nem falar: ainda se ouve pior, ficando-se sem saber se também há cortes. Bastante conveniente, principalmente se atendermos à bulha havida para me retirarem da sala de audiência e ao momento em que assinalo que o escrivão-auxiliar me fracturou o polegar.

M.ma Juíza! Que V. Ex.ª não viva feliz, lamento. Que se sinta em conflito interior, compreendo. Que sofra terrivelmente ao ver a sua obra como Magistrada, também não causará surpresa a ninguém. Mas, ao menos, procure ser prática: a sanha que a inflama contra mim, a nada conduz se exceptuarmos esta infindável cadeia que se desenha há já vários anos.

É V. Ex.ª vingativa? --- Se não é, representa muito bem! Transpõe para os juízos que profere, os problemas pessoais que a dilaceram? --- Há todos os sinais disso! Tem decidido, comigo, contra Direito? --- Aqui, o sim não pode ser mais categórico! Nesta freima de reagir, V. Ex.ª só vem provando uma coisa: sou um elemento incómodo; molesto-a; e consigo ofendê-la. Ora isso enche-me de gáudio, porque mostra bem a distância que nos separa: na verdade, nunca eu me sentiria injuriado por V. Ex.ª uma vez que não ofende quem quer, mas só quem pode!

Nesta minha curta passagem pela ilha, uma ilha onde V. Ex.ª desgraçadamente não cumpre as suas funções como devia fazê-lo, não estranharia se porventura me participassem que o meu comportamento havia chocado as boas consciências burguesas da terra. Isto de chamar-lhes boas consciências é um eufemismo reservado a uma casta de gente que não suporta o mais pequeno beliscão no sossego do seu ramerrão diário. Afinal, que fiz eu de tão execrável? --- Pois bem! Levado pela curiosidade, quis informar-me da vida cultural que anima a ilha. Corria o Carnaval e, por isso, perguntei se uma afamada e antiga casa de espectáculos, que aí se ergue, apresentaria algum número de circo. Disseram-me que isso agora estava a cargo de alguns Magistrados de um Tribunal. E logo acrescentaram que esses acrobatas são exímios nos funambulismos ali verificados. Não fiz mais do que adaptar-me ao estilo.

Joaquim Maria Cymbron
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  1. Ao Sr. E. Mollinet (Eça de Queiroz --- A Correspondência de Fradique Mendes).

JMC