Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

domingo, 29 de novembro de 2015

JUSTIÇA E DIREITO


Este texto saiu igualmente publicado no meu outro blogue. A explicação para o facto vem lá enunciada.

                       

Duas palavras, dois conceitos e muita confusão à volta deles. Muitos pretendem identificar um termo com o outro. Andam mal. Por conseguinte, erra quem disser que os Tribunais administram Justiça em toda a extensão deste vocábulo e na sua acepção íntegra; e erra, porque comummente o que fazem é ditar o Direito. Quando isto ocorre já nem tudo é mau, porque vezes há em que aqueles órgãos de soberania viram as leis do avesso e, não contentes com a façanha, não se ficam por aqui: vão mais longe, o que bem se nota quando soltam aos quatro ventos a notícia de ser Direito o que não passa de um grosseiro simulacro. Não será, no entanto, esta adulteração que porá estorvo à divisória entre Justiça e Direito, na sua linha teorética.

Porquê esta delimitação?

A primeira das palavras, que servem de cabeçalho, é de definição mais que difícil, porque, em estrito rigor, é de definição impossível. Com efeito, Justiça é um dos atributos divinos; como tal está repleta de um valor absoluto; e, portanto, nada mais que isto se pode afirmar dela. Sabemos que é um ideal a perseguir, meta que o homem nunca atingirá na sua plenitude. Por conseguinte, também as sentenças dos Tribunais só parcialmente poderão dar-nos uns vislumbres de Justiça. E até isto requer um corpo de magistrados isentos e sabedores, o que, infelizmente e pelo que toca a Portugal, é cada vez mais raro contemplar.

Quanto ao Direito, apenas é lícito conceder que se trata de um veículo de realização tendencial de Justiça, precisamente aquela que está ao alcance dos Tribunais. Como se vê, é distinto. Desde logo e sem curar da diferença de essência, que é profunda, ao Direito e à Justiça separa-os a distância que vai do meio para o fim: o Direito é, pois, um bem instrumental ao serviço de um valor perene. A diferença de natureza, na relação que estes termos mantêm, já marca muito. Nem essa diferença se desfaz, mesmo que uma aturada busca de Justiça anime o Direito: por mais louvável que isso seja, a verdade é que, para o efeito aqui tratado, tal busca não apaga a fronteira conceptual que tem o Direito a um lado e, do outro, a Justiça. De facto, não a anula, nem sequer a atenua no plano especulativo, acabando antes por salientá-la ainda mais.

Neste enunciado da sua pureza abstracta, parece irrefutável que a falta de conformidade entre os dois conceitos já é bem visível. Contudo, se continuarmos a desenhar o confronto, depressa se verá como essa disparidade se há-de tornar ainda mais sensível.

Vale a pena fazê-lo:

Se Justiça e Direito tivessem igual identidade, teríamos formalmente duas conclusões opostas como possíveis: ou entendíamos que a Justiça mudava de face, ao sabor das reformas jurídicas; ou era força aceitar que o justo encontra plena consagração na lei, se não preferíssemos sustentar que o legislador é justo, o que vem a dar no mesmo. Ora um mero exercício de análise, a par da realidade dos factos, mostram como estão desmentidas ambas soluções. Com efeito, a ideia de ser o Direito expressão acabada da Justiça, não é de admitir porque então cabia perguntar para que se muda a lei se ela é justa. E assim é que, enquanto a Justiça permanece, os sistemas de Direito sucedem-se no tempo e no espaço, significando isto que  a sua transitoriedade é prova de como ele não passa de um bem imperfeito. De modo que, como acima já se aflorou, se esta visão fosse correcta, teríamos que a cada ordenamento jurídico, no tempo ou no espaço, corresponderia uma Justiça distinta. Completo absurdo! Sabe-se que até os mais agnósticos e os maiores agitadores proclamam e aceitam a existência de princípios de Direito, que se impõem como sendo de observância para todos e desde sempre. Essas regras pretendem fazer Justiça e, por este modo, saciar a sede que todos temos desse bem, que é superior ao Direito porque se situa na esfera de tudo o que constitui o fim supremo do homem. Nesse caso, os princípios de Direito, a serem respeitados por todos, espelhariam uma imagem de Justiça. Mas todos sabemos que essas leis encerram um núcleo de valores muito restrito que, de modo algum, comportam generalização. Apesar disto, porque no conteúdo destes princípios existe consonância entre o que o Direito defende e o que se afigura justo no âmbito assim delimitado, não há inconveniente em assimilar os dois conceitos, cuja antítese vem sendo estabelecida. A expressão verbal dos imperativos categóricos, ali formulados, é clara emanação da mais incontroversa e incontrovertida Justiça, com ela mantendo uma correspondência total, que ninguém ousou contestar até à data.

Ficou dito que ao Direito falta a característica de bem necessário que é atributo da Justiça. Esta é um valor que transcende o que é finito e contingente. Tem natureza de uma absoluta necessidade; o Direito é meramente contingente. Por isso, o Direito finda e a Justiça sobrevive. Sendo o Direito, como já se assinalou, mero instrumento para um objectivo chamado Justiça, quem quererá o meio se já alcançou o fim?

Não será demasiado temerário adiantar que uma das causas originantes da balbúrdia que vai dentro dos nossos Tribunais, que uma delas, repita-se, está no abandono da tradição jurídica portuguesa. Vai de moda a pandectística germânica: o povo alemão deve merecer-nos subido respeito pelos valiosos predicados que exibe nos múltiplos ramos do conhecimento, onde o da ciência do Direito não é excepção. Porém, isto não exclui o apreço pelo que é património nosso.

Se os nossos magistrados se ficassem  pela sistematização da matéria legislada, bem estaria porque é demais conhecida a inclinação pela ordem que aquela gente tem, e o escrúpulo que nisso põe. No resto, é um alarde de erudição entrajada numa roupagem de gosto bastante duvidoso e sem qualquer cunho nacional. A velha Escola de Direito Peninsular foi marco relevante do altíssimo expoente que, entre nós, atingiu o culto pelo Direito. Sem nenhuma sombra de dúvida, esta Escola levantou uma das mais belas construções que o mundo jurídico conheceu. Eram maioritariamente Espanhóis, mas não temos por que nos envergonhar, visto que, no grémio daqueles Mestres, elevam-se figuras como a de D. Jerónimo Osório ou a de Frei Serafim de Freitas, nomes que atravessam os séculos e formarão sempre no meio das maiores glórias da dogmática do Direito. A Escola, que também serviram, é motivo de lídimo orgulho para estes autores de genuína cepa lusitana, e quem colheu proveito dos seus ensinamentos terá sempre dificuldade em avaliar, na justa medida, a intensidade do benefício recebido.

Porém, o esquecimento dos velhos estilos de uma jurisprudência autenticamente portuguesa, ao mesmo tempo que se deixa de parte a nossa doutrina, se não for até o desprezo por estas fontes de um Direito com as  fortes raízes que lançou no passado e mais conforme ao nosso ser histórico, infelizmente nenhuma destas duas coisas é o pior dos males presentes na vida dos Tribunais de Portugal. Sofrem de descaracterização. Todavia, este aleijão não acontece só por debilidade dos protagonistas. É certo que essa fraqueza existe. Mas nem tudo é fruto de um ou vários acidentes, nem do acaso das circunstâncias: a degenerescência, que cresce dia a dia, obedece a um escopo criminoso que não está tão bem escondido como pensam os seus fautores --- é o claro projecto de derrube da ordem, não da estafada ordem democrática que é via aberta para quaisquer excessos, solo ubérrimo de todo o tipo de promiscuidade, triunfo garantido da iniquidade, enfim, cancro pavoroso que rói o tecido social, aqui ou onde ela se firmar e crescer. Nem deverá ser a derrocada da Democracia que nos há-de agoniar. Trata-se, isso sim, do propósito de instalar uma ordem que soa a império da subversão, porque tudo que se vem desenhando, no tabuleiro político do nosso desgraçado País, é um atroador grito de revolta contra a Lei Divina. E esta Lei é a ordem válida, a única com legitimidade suficiente para exigir o acatamento que lhe é devido por  obrigação natural de todos os homens, vivam eles em Portugal ou nos antípodas!

Mas não pára aqui a fúria destruidora dos esteios de uma ordem escorreita nos domínios do poder judical. Facilmente se compreende. Deitados por terra os Tribunais, é profundo o abalo de todo o edifício político de um povo. Passam os regimes e outras são as estruturas, bem como a composição dos órgãos de soberania. De todos? --- Não, porque um há que foge à regra! Os Tribunais podem ter novos guiões, se há lei nova, mas as suas faces visíveis não mudam. Quer dizer: neles, algo perdura. É precisamente deste elemento de continuidade que eles tiram a sua força e, por isso, são actualmente o alvo político mais apetecido da Revolução Universal. Portugal oferece um quadro que é um bom paradigma dessa estratégia demolidora.

Senão, vejamos:

Erguem-se vozes estultas bradando que o Direito não é uma ciência exacta. Rotundamente falso! Ignorância nalguns; e muito cómodo para outros, que assim têm porta franca para os seus caprichos e para os seus excessos. O arbítrio já campeia mais do que a conta moralmente aceitável: se a mistificação alastra, será a apoteose do delírio.

Tamanho dislate permite que o combatamos com uma demonstração ad absurdum. Mas o bom senso manda percorrer outra via:

O Direito é, obviamente, uma ciência exacta sob pena de não ser ciência no sentido real da palavra. A persistir no desconchavo de o considerar como ciência não-exacta, o caminho a tomar seria de pregar com ele para o rol de algumas práticas autodenominadas como ciências, mas que têm, ao menos, a honestidade de temperar este abuso acrescentando ao nome de ciências o qualificativo ocultas. Sempre na suposta validade do que bem parece ir além de um primaríssimo erro de análise, porque nalguns toca as raias de uma mentira colossal, não restaria outra alternativa do que  pespegar com o Direito para o meio dos mais celebrados compêndios de charlatanaria.

Em linguagem clara, cabe dizer que o Direito não tem a pretensão de ser uma ciência com o grau de precisão que outras ciências revelam, nem possui a evidência que estas oferecem aos olhos dos que as estudam e, até, dos que meramente experimentam os efeitos enunciados nas suas normas. Mas esta nota de menor perfeição relativa, que o distingue das ciências experimentais como são as ciências da Natureza, e que, em plano bem superior, surge como contraste que deixa a nu especialmente quanto o Direito se afasta da Matemática, essa nota, insista-se, não lhe rouba dignidade científica.

Só mentes completamente transtornadas pela malícia ou alheadas dos mais elementares processos dialécticos são capazes de negar ao Direito a estrutura de ciência exacta, que ele possui. A norma jurídica repousa numa base, cuja aplicação conduz a um resultado bem definido. Este processo lógico tem um notório corte silogístico, e sabe-se como o silogismo está dotado de peculiar firmeza --- a Verdade nele contida é insusceptível de levar volta porque o silogismo não a descobre, apenas a expõe com o máximo rigor de que a mente humana é capaz. 

Se o Direito não fora uma ciência exacta, qual a finalidade do recurso processual? Quem recorre, fá-lo porque não se conformou com uma decisão. E que pede o recorrente? --- A revogação do decidido! Mas esta pretensão que sentido tem se não se reconhece exactidão à ciência do Direito? --- Teimar que o Direito não tem lugar entre as ciências exactas porque está privado do determinismo na dose necessária para torná-lo digno de enfileirar entre aquelas, não só é reduzi-lo à rasteira condição de charlatanismo, como já foi referido, porque também é colocar os Tribunais em pé de igualdade  com uma vulgar barraca de feira, onde se rifam sentenças. E o melhor será, então, que cada um reúna um bom pecúlio para, com ele, acenar ao feirante e esperar que um novo Mercúrio ou fados misteriosos lhe dêem o que almeja.

Decisões, que violam o Direito logo à partida, não são segredo para ninguém; por outro lado, não se desconhece que, de entre essas, as impugnadas em recurso, sofrem frequentemente censura imerecida; e que, muitas vezes, tanto se erra abaixo como acima. Acaso reside nesta volubilidade de julgados o motivo pelo qual se recusa ao Direito a qualidade de ciência exacta? Será que a versatilidade das sentenças provenientes dos Tribunais legitima juízo tão desastrado?

Salta à vista que o desencontro de decisões judiciais já autoriza a concluir que, pelo menos, umas não serão nem rectas nem prudentes porque, se  ocorre oposição entre elas, resulta imposível que sejam todas reflexo fiel da lei. E, por cima disto, o juízo de reprovação que suscitarem terá sempre de assentar numa apreciação suprapositiva, que há-de situar-se junto a um padrão de valores transcendentes, aquele que obrigou os Romanos, numa sabedoria edificante, a chamar ars boni et aequi 1 à nobre ciência do Direito. Ars boni et aequi, eis o mote que é legado daqueles povos do Lácio e que não se compreenderia, se nele não se visse a clara alusão a um foco de luz imorredoira, que tudo aquece e ilumina, bem ideal, como já acima se disse, e que dá pelo nome de Justiça.

A realidade jurídica desenvolve-se a partir de normas bem ordenadas, obedecendo a uma sistematização de experiência multissecular e com um objecto perfeitamente definido. Não se manifesta, contudo, numa sucessão de processos mecânicos: ela arranca do homem para  o homem e, daí, o seu  intenso drama. Ao dizer drama, quer-se, com esta palavra, assumir o significado que já o latim foi buscar ao grego: acção, uma acção, acrescente-se, que pode acabar em tragédia, não por culpa do Direito, mas apesar dele. E é isto que faz o seu enorme encanto: certamente que o Direito não deixa de ser uma pérola de alta cotação só porque espíritos broncos ou maus, ignorantes do valor que as suas rudes mãos seguram, o tratam como artigo de fancaria, quando não o atiram à fossa mais próxima que o caminho trilhado lhes proporciona. Desta profanação do Direito, são os Magistrados que se situam na primeiríssima linha dos responsáveis. Coisa singular, ou não será?

Convém distinguir dois tempos na lei: a lei publicada; e a lei aplicada. No primeiro tempo, a lei é, ou devia ser, um foco a alumiar os seus destinatários. Tem, pois, uma função pedagógica: mostra os terrenos que pisamos e, neles, indica-nos o caminho a tomar. No tempo seguinte, a lei corrige os aleijões resultantes da sua violação. Eis a altura em que se espera da lei que se revele na plenitude da sua força. É verdade que apenas pode aplicar-se o que dispõe a lei, mas aqui a lei aplicada já é acto, enquanto antes é mera potência. E quem traz a lei passiva da inércia dos códigos à actualidade palpitante da vida quotidiana? --- São os Magistrados! É quando eles se mostram réus do mal que semeiam, como seriam dignos de uma aura radiosa se outro fora o seu proceder.

Na ciência do Direito, é parte determinante a vontade humana. Porém, mais, muito mais do que no autor da lei, a intervenção da vontade está patente na função judicante. É precisamente na discrepância vivida nestes dois momentos --- a feitura da lei e a sua aplicação --- que se verifica o desatino do repúdio pelo Direito como ciência exacta. Aproveitar a incerteza que a actividade jurisdicional nos traz, umas vezes por lapso e noutras com mera culpa ou intenção deliberada, utilizar essa imprevisibilidade, repise-se, para negar ao Direito o carácter de ciência, por inteiro, não é seguramente um despropósito de proporções menores do que poderiam ter os que procurassem  apoucar a Física, depois que a teoria dos quanta veio mostrar a disteleologia daquele ramo do saber. A esta posição, tanto como despropósito, poderíamos chamar-lhe risível. E o que se diz da Física, igualmente seria lícito afirmar de qualquer outra ciência, só pelo facto de nenhuma, no âmbito do seu objecto, ter elaborado um sistema definitivo.

Não foi por casualidade que atrás se falou na Escola do Direito Peninsular. A sua trave-mestra era o objectivismo, contrário ao relativismo subjectivista que já se vinha instalando e, progressivamente, ia contaminando as mentes. Este vício do pensamento é que impede o observador atento, por mais escrupuloso que seja, de ver a causa profunda do que há de ignoto no horizonte tanto das Ciências Físicas como do Direito, um aliquid desconhecido que jamais findará. O erro descomunal deste desvairo filosófico está em crer que é possível ao homem tornar-se criador da Verdade, e de que não há nas coisas outra Verdade do que aquela que ele próprio lá coloca. Arvorado o sujeito cognoscente em norma da Verdade, conseguiu-se a inversão total do que dispõe uma sã gnoseologia, a qual nos manda buscá-la naquilo que é objecto do nosso conhecimento, em lugar de a plasmar nuns moldes que a nossa razão gerou. Na raiz deste desvio criteriológico, adivinha-se o legado fatal de Kant. A cisão que, desde a escola do filósofo de Königsberg, se vem operando no Ser, foi o remover da barreira que tolhia o avanço à arbitrariedade no campo da Moral e da Liberdade, para não falar de outros valores outrora acatados e seguidos pelo homem no convívio que o ligava ao seu semelhante. Como era inevitável, as consequências perniciosas deste corte, imediatamente se fizeram sentir no foro jurídico. Tudo estremeceu, no Direito e fora dele, e deste cataclismo ainda o homem não se recompôs, nem parece que o venha a lograr enquanto teimar no rumo traçado.

Se nisto assentarmos, e sinceramente não se vê meio de contraditá-lo, facilmente se há-de concluir que o Direito só não é uma ciência exacta para aqueles que se decidem pela subjectividade feudatária do relativismo, porque nesses é aquilo que cada um quer e como quer, hoje, amanhã e depois. Enganam-se redondamente: a Verdade está na coisa e essa é imutável; o que varia é a apreensão que dela temos. Esta diferença é suficiente para vincar a distância que separa o relativismo do objectivismo. Em contrapartida, os que alinham sob a bandeira do objectivismo, estão cientes de que na procura da Verdade, inteligível de iure conquanto de facto sobre sempre algo que não se chega a tocar, o tal aliquid desconhecido ao qual se aludiu há pouco. E, nessa procura, não estamos impedidos de obter certezas legítimas. Ora estas certezas também vivem no mundo do Direito, conferindo-lhe deste modo categoria de ciência exacta.

Neste duelo entre relativismo e objectivismo, importa ainda sublinhar o que invocam os defensores do relativismo. A reserva, que opõem ao objectivismo, funda-se numa argumentação que, a não ser produto de um distúrbio mental, é então uma posição ditada por má fé. Com efeito, quando apontam para a irrefutável oscilação das teses científicas, calam o mais elementar:

Por mais que o nosso conhecimento se estenda, como já ficou dito há ainda muitos outros segredos escondidos que o espírito humano, na sua avidez de saber, pressente e corre a desvendá-los. A estas descobertas, outros arcanos sucederão até que o homem, alcançado o seu fim sobrenatural --- a visão beatífica de Deus ---, vem a achar-se saciado. Portanto, a já referida instabilidade da dogmática científica, por um lado, nada prova a favor do relativismo, nem destrói, pelo outro, o que há de consistente no objectivismo. Sendo que isto tanto se vive no mundo físico como no Direito ou em qualquer outra parcela da vasta área do saber humano, tira-se daqui a inilidível certeza da aptidão do homem para participar no conhecimento da obra da Criação com todas as leis que a regem. Participar, só; mas não abarcar!

Participar no conhecimento do Ser, como já se deixou entender, não é o mesmo que arrogar-se a autoria do que foi criado. A plenitude da Verdade, que as coisas encerram, está com o seu obreiro. Mas excluída a vocação do homem à bem-aventurança eterna, não há grandeza mais elevada que esta sua capacidade para penetrar nas esferas sublimes da sabedoria, seja ela especulativa ou prática. A pugna entre a autonomia do homem diante de um conjunto de valores, onde se manifesta uma matriz kantiana, contra a qual se levanta a heteronomia propugnada pela filosofia cristã, tem por desfecho este antagonismo insusceptível de conciliação, enquanto se mostrar irredutível a pertinácia de quem labora em erro. Pouco ou muito que isto desgoste as mentalidades modernas, a ortodoxia do pensamento não pode ceder diante do que é falso. Em tempo algum! Em nenhuma circunstância! Talvez desapareçam civilizações e culturas inteiras; cidades e impérios poderão cair; da matéria, mais ainda ruirá; mas o que é espiritual há-de resistir e dele será o triunfo final!

Antes de terminar convém ainda que, por uns curtos instantes, nos debrucemos sobre um aspecto impossível de não cuidar:

A organização judiciária reclama uma distinção no seio da Magistratura: Juízes e Procuradores. Restringida a análise aos primeiros, é hora de dizer que não há-de ser o Juiz um mero aspirante ao poder. E o poder de que vierem a investi-lo, não deve tomar outra natureza que não seja a de uma arma com uma única missão --- desempenho de um sacerdócio! A Judicatura, pois, pressupõe dignidade e essa dignidade não está ao alcance de todos. Os que a exercem, formam um dos corpos mais aristocráticos que são conhecidos, e a pirâmide, em que se estrutura, dá-lhe uma hierarquia muito própria. Goza de total independência: alheio ao irresponsável sufrágio das urnas, intocável por quem governa, cada Juiz é rei e senhor dentro do seu Tribunal. Não monta o grau em que aquele se situa: da base ao vértice da pirâmide ou em sentido inverso, cada Tribunal é couto dos Juízes seus titulares. Escalonamento tão definido não o possui, em Portugal, nenhum outro órgão de soberania, nem creio que o haja numa qualquer outra sociedade, mesmo naquelas cujos pilares tenham a estulta veleidade de se firmar sobre as areias movediças da Democracia! Entre nós, no plano temporal, apenas a instituição militar é hoje capaz de revelar uma estrutura interna tão robusta e tão invulnerável como a que suporta o corpo dos nossos Magistrados Judiciais. Mas até as Forças Armadas, antano tão ciosas da autonomia que a dimensão de um quase-Estado dentro do próprio Estado lhes dispensava, já não conseguem ufanar-se por deter a mesma força de que gozam os Juízes e, principalmente, uma independência igual.

Esta força e esta independência não têm de assustar: ponto é que os Juízes façam um recto uso delas. Por tudo isto é que a querela à volta do Direito como causa instrumental da Justiça, não se resume a um problema de fria metodologia, porque é simultaneamente uma questão moral. Essa questão tem a ver com a formação cívica dos Magistrados mais implicados na administração da Justiça, aqueles que, nessa função, têm a palavra resolutória --- os Juízes! E a tarefa de incutir aos Juízes um sentido de honra e de integridade, deve ser a principal preocupação de todos. Em especial dos que já sentiram os arrasadores efeitos dos desmandos que provêm da viciosa falta daquelas noções, mormente quando se faz notar a ausência quase absoluta de isenção.

Nos dias que correm, a sociedade humana, toda ela, está atacada de uma doença que pode ser letal: padece do que é, talvez, a maior crise de inteligência rectamente ordenada, que alguma vez a tenha afligido. O eixo de valores, ao qual se arrimaram os nossos maiores, foi primeiramente deslocado; acelerou-se uma crise de pensamento, já latente e da qual derivou o vazio moral; e, deste, depressa se resvalou para a desolação do cepticismo e do desencanto por tudo que é portador de uma semente de vida. De um pólo ao outro da Terra, ouve-se um grito necrófilo. Parece que a vida cede o seu lugar à morte. Ora isto deve repugnar, principalmente àqueles que tiveram a graça de nascer numa civilização que floriu na Fé da vitória sobre a morte!

Desta decadência não escapam muitos Juízes, como repetidamente se vem denunciando, explícita ou implicitamente, ao longo do tema central aqui abordado. Por culpa própria ou alheia, o que não interessa agora apurar, porque, neste passo, apenas se aprecia o tristíssimo enquadramento onde eles desvirtuam a sua missão de uma forma ou de outra. Esses Juízes, frise-se de novo, rubricaram e continuam a rubricar uma certidão de falta de idoneidade para o exercício de tão excelso quanto espinhoso é o cargo que não merecem desempenhar. Ainda que, porventura, não seja esta degradação a de maior intensidade de todas que afligem a vida nacional, ela é, por certo, a mais inquietante porque os seus efeitos repercutem ampla e profundamente em todos os sectores da comunidade. E o índice de culpa do seu mau comportamento, quando aquela manifestamente lhes cabe, é o mais elevado, para lá de toda a dúvida, porque a função que cumprem é, também, a mais proeminente na vida temporal de qualquer sociedade civilizada.

Apesar de tantos sinais desanimadores, a esperança numa Justiça mais conforme à pureza do seu ideal não está morta. Ela refugia-se na certeza de que ninguém abomina uma equitativa aplicação do Direito: pelo contrário, todos apetecemos uma ordem com essa particular fisionomia. Se, na verdade, ambicionamos atingir este fim, urge iniciar uma reforma de mentalidades. E nunca será demais lembrar que pode ser enorme a diferença que vai do uso de uma beca ao carácter daquele que a veste. De facto, nem sempre há correspondência entre o hábito externo e a personalidade de quem por ele é coberto. Em estilo mais prosaico: não tem igual sabor falar de um Sr. Juiz, ou de um Juiz, que é um senhor. Este desajuste traduz a origem e a explicação de muitos males! 


Joaquim Maria Cymbron

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1.      D. 1, 1, 1 pr.

JMC

 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

CIRCO JUDICIAL


Personagens, por ordem de entrada em cena:
  • ARGUIDO --- Primogénito (como lhe chama o patrono, tornando difícil a identificação porque naquela terra há muitos primos, mas nenhum se chama Génito).
  • PATRONO --- advogado, teólogo, historiador (não sabendo nada de nada); ultimamente, semet faciens Conde de Benavente.
  • JUÍZA --- livre e independente, portanto imparcial (pelo menos, não lhe falta esse estatuto).
  • TESTEMUNHA --- equidistante (qualidade que só o cinismo lhe podia dar)
  • LIIMPA-BOTAS --- anónimo (completamente à margem do jogo de forças).
 
Tudo se passa na ilha de S. Miguel 
 
 ACTO I
Escritório de advogado, autêntica baiuca.
 
ARGUIDO
 Carlos, estou com bastante receio.
 
PATRONO
 
Receio de quê?
 
ARGUIDO
Ora, de que há-de ser? Do julgamento, de que corra mal a audiência.
 
PATRONO
Correr mal, porquê? É um temor infundado, homem!


ARGUIDO
 
Garantes-me que assim é, que não há perigo?
 
PATRONO 
 
Nenhum perigo, está sossegado. (Pausa, para logo prosseguir). Olha, o ofendido é parte ilegítima, litiga de má fé e o processo de que lança mão é impróprio.
 
ARGUIDO
Lá está. E é aí que bate o ponto.
 
PATRONO
Lá está, o quê? E onde é que bate o ponto? Explica-te melhor.
 
ARGUIDO
Há por aí quem diga que, nessa lengalenga, estão contidos todos os conhecimentos de direito processual que tens, e que a tua ciência jurídica substantiva não vai muito além, se não for ainda mais fraca.
 
PATRONO
E isso aflige-te? Cuidas que para a chicana é preciso mais? Ouve! Minado o terreno, podemos atirar a lei às malvas, que nem se dá pela sua falta. Desengana-te! Em tribunal, quase nunca triunfa a Justiça, porque é o medo, a ganância, o nepotismo ou o ódio que pesam.
Repara, menino! As juízas e as procuradoras, essas criaturas que por aí aparecem, disfarçando o que não têm sob a solenidade das suas becas e que só em sonhos terão imaginado que um homem lhes pudesse beijar a mão fora dos transportes da paixão amorosa, essas criaturas, repiso, ficam derretidas quando lhes lambuzo os dedos, honrando por este modo os pergaminhos que herdei: sempre sou um Silva, caramba, da estirpe dos que viajaram até Castela no séquito de uma Infanta, e voltaram a Portugal na alma varonil de uma Rainha. Por outro lado, represento o ilustre João Afonso Pimentel, que arribou a esta ilha e sentou solar nas Grotas Fundas.
 
ARGUIDO
Espera aí! Essa agora não entendo. Dizem-me os genealogistas da terra que metade da ilha tem sangue daquele de quem te proclamas representante. Como excluis tantas linhas descendentes?
 
PATRONO
Estranhas, pois, como tendo o sangue do João Afonso acabado por cair inteirinho numa metade da ilha, eu me enfeite com um título tão valioso para a sociedade. Sabes, rapaz? A gente da nossa ilha divide-se em dois grandes grupos: de um lado, estou eu; do outro, estão os restantes micaelenses. Juntos, formamos a unidade; separados, eis as metades que desfarão a tua perplexidade. Os genealogistas, quando te referiram que o sangue do João Afonso se encontra hoje em metade da ilha, estavam a pensar em mim. Nem erraram, nem te mentiram. Aí tens!
 
ARGUIDO
És mesmo danado! Mas o outro, esse anda por aí a morder-te as canelas.
 
PATRONO
Afinal, ele que diz?
 
ARGUIDO
Conta que tiraste o curso recorrendo a expedientes parecidos aos do patusco do Leão, que o Trindade Coelho popularizou (1); que montaste banca de advogado; e que nunca mais olhaste para um código.
 
PATRONO 
 
Não anda longe da verdade. Ronha, meu amigo, o que se quer é ronha. Não sou caso único, podes crer. Ou julgas que não? Olha, desde que vá recebendo medalhas, possa ir na procissão do Senhor Santo Cristo e tenha entrada no Clube Micaelense (2), o resto não me tira o sono. Acho-me realizado!
 
ARGUIDO
De ti, não esperava outra reacção. É verdadeiramente a resposta de um homem íntegro, incapaz de adular quem quer que seja, modelo acabado de sobriedade, espelho fiel da antiga gravidade portuguesa. Mas escuta, Carlos, isto não é tudo.
 
PATRONO
Que mais há?


ARGUIDO
Há que aquele patife tem o atrevimento de espalhar que tu, a propósito da solenidade religiosa da Imaculada Conceição (3), se escrevesses o mesmo nos tempos do Santo Ofício, só não acabarias nas fogueiras da Inquisição, porque antes que as labaredas te consumissem, serias devorado pelas gargalhadas da irrisão pública. E acrescenta que a História dos Açores, essa jóia cultural de que foste o primoroso artífice, não passa de uma reedição das partidas e chegadas, coluna de grande utilidade que os jornais da terra (grandes marotos!) deixaram de publicar.Tudo isto são calúnias, é bom de ver. Mas já sabes que, da mentira, sobra sempre alguma coisa.


PATRONO

Lá sobrar, sobra. E o pior é que tais atoardas, estas sim, doem a valer, são maiores da marca. Eu, Agostinho reencarnado; eu, o moderno Frutuoso, enxovalhado e vilipendiado desta forma! Sempre é biltre, quem assim me malsina. (Decidido). Bem, não pensemos mais nisto, por agora, e ala para o Tribunal, onde já tardamos.


ARGUIDO

Lembrei-me de mais um episódio. Ele zomba de ti, porque te referiste a uma herança, que então se partilhava, como constituindo uma herança jacente e chamaste de cujibus aos seus autores.


PATRONO

Essa é boa! (Já na rua, puxando pelo arguido). A herança só ganha corpo jurídico quando os seus autores jazem no cemitério. Por conseguinte, que outro nome lhe podemos dar, além de herança jacente? Quanto à locução de cujibus, que erro encontra ele? Olha que o meu latim, principalmente o forense, causaria a inveja do próprio Cícero. De qualquer maneira, ainda que me engane, que importa isso? Nos tribunais, poucos conhecem a existência de tal idioma e mesmo esses poucos quase nada sabem. Daí que senso crítico sobre a pureza da língua do Lácio é coisa que não há que temer daquelas bandas.
 
 
ARGUIDO
Mas se os magistrados não compreendem o que escreves ou dizes, qual a razão por que vais entremeando o teu latim?
 
PATRONO
Pela mesma razão que me faz servir-lhes má comida em pratos da mais fina porcelana. Deslumbrados com o serviço de jantar Vista Alegre, não se queixam do resto. E, com esta conversa, não é que chegámos ao Tribunal?
 
ACTO II
Tribunal às moscas, não convém publicidade.
 
PATRONO
Peço à testemunha que informe o Tribunal da opinião que tem sobre o perfil do meu cliente, isto é, da sua estatura de cidadão.
 
TESTEMUNHA
Não hesito em afirmar que é um homem de uma ética sem paralelo.
 
PATRONO
Pode ser mais explícito?
 
TESTEMUNHA
Com certeza! O arguido é de uma rectidão a toda a prova; tem uma generosidade que comove; e nunca prejudicou ninguém.
 
PATRONO
Repare, tudo isso é louvável, mas insisto: fale de casos concretos e esqueça  as grandes linhas que caracterizam a moral do meu cliente que, para isso, estou cá eu.
 
TESTEMUNHA
Bom, Sr. Dr., nesses termos deixa-me um pouco baralhado. Quando me pediram para vir cá, pensei que bastariam vagas generalidades e muita conversa fiada. Tudo preparado para o safar, não é? Factos, factos que abonem a favor dele, para ser franco, lá isso não sei de nenhum.
 
PATRONO
Ora o que me havia de sair na rifa. (Enquanto dura o desabafo do patrono, a M.ma Juíza parece absorta em pensamentos profundos e não dá tento do que a rodeia). Que diabo! Pense bem: não se recorda de nada que interesse ao apuramento da verdade?
 
TESTEMUNHA
 
Na verdade, por mais que dê tratos à memória, não consigo. Se mo tivessem dito, já eu vinha preparado e despejava aqui o necessário. (Neste passo, a M.ma Juíza, que trazia a beca aberta, o que permitia divisar uma perna olímpica, continuava alheia ao diálogo travado. O patrono reage vivamente).
 
PATRONO
Só me faltava mais esta! Não sabe que o advogado não pode falar com as testemunhas?
 
TESTEMUNHA
Sim, mas também não ignoro que ninguém cumpre isso à risca. Há sempre formas de contornar a lei. E, quando se trata com advogado exímio nesses funambulismos, são favas contadas.
 
PATRONO
Cale-se, cale-se! Este Tribunal não tem qualquer empenho em medir o grau de astúcia e rabulice dos advogados que vêm à barra.
Vamos por outro caminho: acha que o meu cliente, excelso cultor da virtude da caridade, agia do modo pelo qual o ofendido se queixa, para o ferir nos seus afectos, ou ainda que o meu cliente, meticuloso observador das regras da honestidade, tinha este comportamento para lesar o mesmo ofendido, atirando com ele para a indigência?
 
JUÍZA (à parte)
Perguntas nitidamente sugestivas. Mas vou consentir nelas porque o ofendido merece colher tempestades uma vez que semeia ventos. Por outro lado, o patrono do ofendido nos autos não se opôs porque até ele próprio já pensa o mesmo.
 
TESTEMUNHA
Qual quê!
 
PATRONO
Então?
 
TESTEMUNHA
Foi tudo na galhofa, não passou de uma brincadeira.
 
PATRONO
Muito obrigado, não preciso de mais nada.
 
ACTO III
Café onde aflui gente atraída pelo desfecho do julgamento. Grande festança. Celebra-se a absolvição do arguido. O patrono é muito vitoriado.
 
LIMPA-BOTAS
Mais um êxito, Sr. Dr.!
 
PATRONO
Não há motivo para tanto vivório. Eles vêm-me comer à mão!
 
LIMPA-BOTAS
Eles? Quem são eles?


PATRONO
Alguns dos magistrados.
 
LIMPA-BOTAS
Como o consegue?
 
PATRONO
É o que há de mais simples. Toma tento: eu até defendi o Primogénito, o qual não presta para grande coisa. Defendi-o como defendo outros, tanto ou ainda mais reles.
Nunca fui selectivo. Batem-me à porta e eu atendo-os. Isso revela-me os podres de muitos, os seus rabos-de-palha. Nos meandros do crime, há tanta ligação inconfessada. Estás a entender-me?
 
LIMPA-BOTAS
Perfeitamente, Sr. Dr. No entanto, faça o favor de dizer-me: o Primogénito estava inocente ou era culpado? Eu sei que os advogados não devem revelar o que se vive por trás do que é levado à audiência de julgamento, mas o Sr. Dr. é um homem superior que não liga a essas ninharias. Ou neste caso tem algum escrúpulo em desvendar o segredo?
 
PATRONO
Estou feliz por me avaliares desse modo. De facto, mais do que meras formalidades, essas ninharias, como lhes chamaste com inteira propriedade, não passam disso mesmo: autênticas minúcias que não devem ocupar o espírito de quem se preza. Por outro lado, escrúpulos, só sei o que isso é, de ouvir falar: nunca os senti na vida! Não há, pois, nenhum fundamento para me fechar num silêncio teimoso.
O Primogénito, apesar do fraco conceito em que o tenho, não cometeu qualquer crime. Pois não sabes da recente história, passada com um juiz e uma juíza de um Tribunal da Grande Lisboa, que se envolveram numa relação de fortíssimo ardor sexual, cevando a luxúria, que os consumia, nos gabinetes ora de um, ora de outro? E isto talvez para que a rotina não esfriasse a paixão que mutuamente os abrasava. Não tiveste conhecimento desta notícia?
 
LIMPA-BOTAS
Nem a mais pequena ideia. E como acabou isso?
 
PATRONO
 
Deu em nada, como de costume. O CSM decidiu que não havia ilicitude naquele comportamento. É certo que o Primogénito não goza da impunidade que favorece os nossos Magistrados. Mas, ao lado daquele festival, sórdido a ponto de correr parelhas com exemplos dos mais viciosos actores na arte da fornicação, tudo que não fosse absolvição seria uma refinada crueldade.

 LIMPA-BOTAS
 
Está o Mundo do avesso!
 
PATRONO
Que querias? Sacristia e beatério? Olha que rico amigo me saíste! Não te entra nesse bestunto que, se o Mundo se endireita, eu caio na miséria? Acorda, desgraçado, e abre os olhos de uma vez por todas! Não te iludas, e compenetra-te que eu pertenço a uma casta de vermes só capazes de medrarem se tiverem a podridão por alimento: sou um gusano que vai sobrevivendo no meio de detritos.
 
CAI O PANO 

 
Joaquim Maria Cymbron 
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  1. In Illo Tempore --- Leão, Rei dos Animais.
  2. Conta-se que foi expulso por falta de pagamento de quotas. Más-línguas, com certeza.
JMC

sexta-feira, 27 de março de 2015

O BORDEL E O TRIBUNAL


As duas fotocópias, que abaixo acompanham este texto, apresentam conteúdo de invulgar crueza: são verdadeiros documentos pornográficos!
Apesar de tudo, achei que devia difundi-los tal como saíram a público e escrever as linhas, que seguem, para que se pondere sobre a abominável decadência da nossa Magistratura.
 
 
O Correio da Manhã, no passado dia 20 do corrente mês, trouxe uma notícia ribombante ao conhecimento do público. Poucas, mesmo raríssimas são as ocasiões em que vejo um órgão da comunicação social prestar tão relevante serviço à comunidade.

A chamada de atenção surge, de imediato, na primeira página; o desenvolvimento vem no interior. Qual a matéria? --- Uma ninharia! Foi só isto: a história do clássico triângulo. Desta vez, um juiz e uma juíza pousam descaradamente em dois dos três vértices que concorrem a desenhar a figura; o vértice, que falta, é o lugar do queixoso.
E onde girava a roda desses inocentes prazeres? No mais recôndito do lupanar escolhido pelos que, no doce torpor dos sentidos, esqueciam estado e posição, na sofreguidão de saciar impulsos lascivos. Coitaditos: não faziam por mal, era uma loucura romântica aquela que os cegava!        

Mas não se cai em injúria por relegar um Tribunal para a categoria de lupanar? Concedo que é realmente injurioso, mas não tem o Tribunal de se dar por atingido, porque quem se pode doer é o lupanar. E, a haver ofensa para o Tribunal, em caso algum seria eu o autor do agravo, porque quem profanou o recinto foram duas pessoas que ali trabalham. A distância, que puseram entre o local dos seus desmandos e um bordel, cifra-se em dinheiro. E o sistema de cobrar não rebaixa o bordel, porque lhe deixa o mérito de aparecer com a cara daquilo que é.
Porém, tudo o que foi expendido até aqui é reflexo de uma filosofia de vida onde reinam conceitos retrógrados e que cheiram a bafio. Abramos os olhos e arejemos as mentes:
 
O Conselho Superior da Magistratura decidiu-se pela não-existência de qualquer ilícito. É desta forma sumaríssima, que o jornal refere o fundamento encontrado por aquele órgão para ordenar o arquivamento do processo disciplinar, instaurado na sequência da queixa recebida. Não adianta mais. E, assim, permite que se murmure e rebente a indignação.

Temos de convir que, no presente caso, um juízo de reprovação é um exagero. Só numa reacção manifestamente excessiva se poderá concluir pela prática de uma infracção disciplinar. Infelizmente, não é qualquer sensibilidade que se mostra provida de finura suficiente para julgar este episódio com aquele equilíbrio que é curial exigir.
Summum ius, maxima iniuria. Afinal que fizeram as pobres criaturas? Prevaricaram? --- É bem sabido que não há ilicitude onde não se verifique, primeiro, a tipicidade e, em seguida, a culpa. Podemos ainda admitir a tipicidade, mas resta a culpa.

Será então de acusar aqueles mesquinhos por agirem com culpa? É que a culpa reúne dois momentos: consciência do desvalor do comportamento por acção ou por omissão; e vontade de assumir esse comportamento. A verdade é que estes elementos faltam aqui.
Com efeito, não há notícia de um magistrado ter prevaricado, consciente de que ia contralegem. Desde há muitos anos que isto é uma constante. Compulsem-se os anais judiciários e procure-se encontrar lá um caso em que tivesse sido decretada uma condenação. Nada, nem uma para amostra! O estilo usado é sempre o de que o magistrado, que responde, se comportou sem consciência de que violava a lei. Disto, que devia ser motivo de tristeza, de tristeza e de vergonha porque é autêntica apoteose da impunidade, desta desolação, insista-se, se ufanam os senhores magistrados porque, entendem eles, resulta provado que são limpos e puros como uma criança saída das águas do baptismo. Entretanto, o leigo obrigado a recorrer aos Tribunais passa a saber que nunca correrá o risco de ser julgado por magistrados deliberadamente inclinados a um mundo de qualquer tipo de marginalidade, porque os piores, pelo menos transitoriamente, são apenas ignorantes. A confiança, que isto transmite, como se torna fácil de calcular, é imensa! Mas esta censura é, sublinho, produto de feitios rancorosos.

Prosseguindo, logo se notará que, neste delicado caso, a ausência de culpa por defeito de vontade também não é custosa de demonstrar. Os contornos sucintamente descritos pelo jornal, e os mais que se adivinham, fazem supor que, num comportamento objectivamente escabroso, até houve muita renúncia e um alto espírito de missão. A intenção de perpetrar o que está proibido era-lhes completamente alheia. De resto, já se registou antes que nenhum deles tomara consciência da ilicitude dos factos pelo que, por mais que se quisesse, nunca seria possível imputar-lhes o propósito de derrocar os padrões legalmente instituídos.
Os processos litigiosos, que arrancam de situações idênticas às que viveram estes magistrados ou que irrompem como incidentes de outras causas, enfim, as questões conflituosas submetidas à apreciação dos mesmos ou de outros magistrados, independentemente da origem que têm, todas essas pendências requerem apurado estudo. Para levar a cabo essa análise, nada melhor do que proceder à reconstituição dos factos. Nunca sendo possível atingir uma perfeita comunhão entre as sensações que cada um vive e as do nosso próximo, o mais que se conseguirá, como aproximação, é que as experimentemos nós próprios. É difícil, para não dizer irrealizável determinar o grau de ilicitude da perversidade alcançada e fixar a intensidade do dolo sem sentir palpitações da carne tão acesas. Não se pode recusar, aos magistrados em causa, um enorme afecto à profissão que abraçaram, afecto bem revelado na frequência e no ardor das cenas que resolveram representar em conjunto. Mais concretamente: todos aceitamos, por notório que é, não ter sido o apetite insofrido da libertinagem que os arrastou para aqueles fogosos transportes. A atmosfera daquele recanto era, tendencialmente, de uma sensualidade idílica: a mesma que se respira num serralho do Oriente! Nem devemos lamentar não avistar ali o histórico eunuco, pois a sua presença foi perfeitamente dispensável: num ambiente impregnado de uma ponta à outra da mais refinada candura e do mais estreme idealismo, esse guardião da honra dos haréns estaria a mais. E a persistência, que nessa tarefa observaram estes mártires da moral pública, essa então é exemplar e até comove. Mesmo à custa da sua reputação e vencendo um natural pudor, que ninguém ousa negar-lhes, sacrificaram-se pelo zelo em que ardiam de dignificar as suas funções. Tamanha abnegação, força é confessá-lo, não é para todos!

Nestes termos, parece inilidível que não houve da parte dos denunciados o mais pequeno desejo de infringir a lei. E uma vez que nulla poena, sine culpa, a decisão foi a que já conhecemos. Em jeito de remate, pode ainda repetir-se a ideia, já expressa, de que este conúbio não foi fruto da luxúria, porque foi animado por um elevadíssimo sentido do dever!
 
Joaquim Maria Cymbron
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                                                                                                            JMC  

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A ILHA DOS LAGARTOS

Cumpre esclarecer que S. Miguel não é, nem quer ser por direito próprio, a ilha dos lagartos. Sem sombra de dúvida que não tem nisso qualquer empenho. Os lagartos, que por ali rastejam, chegaram quase todos de fora, e cobrem de letal veneno a terra sagrada do Arcanjo. Realmente, na sua maioria, são importados.

Devem provir da ilha do Komodo e de mais umas quantas outras, lá para os confins da Indonésia, onde habitam os sobreviventes de uns espécimes de passadas eras. Animais de aspecto pouco tranquilizante, ao caminhar arrastam com eles uma baba pestilenta, que escorre das suas bocas. Essa baba repugna e mata!

 

Impunha-se este exórdio, que vai destacado, para obstar a generalizações descabidas e permitir que se avalie o que segue, nos precisos termos em que a minha consciência o traçou e a minha vontade lhe deu corpo.

Feita esta aclaração, é altura de principiar a tratar dos lagartos que, perigosamente, se movem na bendita ilha de S. Miguel. E esse propósito atira-nos para o seio de alguns Tribunais, porque é aí que eles semeiam a devastação. Mas, contrariamente aos das paragens orientais, os exemplares desta raça deram em refinar e são de muito esquisito paladar: têm presas da sua especial predilecção, rejeitando outros nacos que, por serem de mais pesada digestão, escapam à sua voracidade. Questão de estômagos mais delicados, talvez.

Contudo, os lagartos também se enganam. E, às vezes, decidem ferrar o dente em quem não deviam morder. Felizmente para nós, o instinto sanguinário deles não os adverte de que só o lançar de olhos sobre a vítima escolhida ou os silvos de uns animalejos, que os guiam na depredação, não afastam a probabilidade de que surja um erro.

Foi afortunado o nosso António José da Silva, quando imaginou uma ilha dos lagartos, à frente de cujo governo, colocou o companheiro leal da inesquecível figura desenhada pelo génio de Cervantes. No entremez criado pelo Judeu, a um homem que enjeitava Justiça pintada, Sancho Pança, com a naturalidade dos ingénuos, respondia que não havia naquela ilha outra Justiça senão pintada.1 Desta ironia crítica, infere-se que o mal provocado pela desconcertada aplicação do Direito não é de hoje: com efeito, nunca os pratos da balança da Justiça foram de fácil equilíbrio. Mas é custoso supor que alguma vez andasse a Justiça tão pintada como agora.

Havia de surpreender-me se alguém ignorasse que é ao Direito, no domínio temporal, que se atribui o papel mais marcante como veículo de realização da Justiça, e dele se espera que cumpra a sua função. Função realizada coactivamente, porque a realização espontânea deriva da ascese interior e do sentimento religioso de cada um. De qualquer modo, repise-se esta ideia: o Direito não deixa de ser instrumento da Justiça.

Todavia, nos dias que correm, não direi invariavelmente, mas com uma frequência indesejada, é o Direito um instrumento que maltrata a Justiça, e ninguém de são juízo, aquele que sobrar a quem ainda não perdeu, por completo, a noção da Verdade e do Bem, nenhuma dessas pessoas, insisto, irá negar que o Direito deixa, após ele, um rasto desolador, dando da Justiça uma imagem que é bem negra. Os lagartos, os que se meteram em S. Miguel como o intruso é encontrado em propriedade alheia, depois de ali entrar sem ser convidado, e os raros que ali nasceram como aberração de um acaso, daqueles que a Natureza tem, esses bichos de aterrar sabem de sobra a razão pela qual assim me pronuncio. De resto, nem outra coisa havia a esperar: quando o Mundo, todo ele e nos mais diversos campos, anda revolto da maneira que vemos, natural é que já ninguém se admire que seja hediondo o espectáculo oferecido pela quase generalidade dos nossos Tribunais. Aquilo a que se assiste é ao corolário desgraçadamente lógico de premissas sem tino e desconjuntadas de uma à outra ponta.

A Justiça é um valor ideal que se persegue, mas que jamais se alcançará plenamente in statu uiae. Integra-se na harmonia do Ser, na sua Verdade e no Bem que naquela se encerra e dela flui. Por isto mesmo, na sua abstracção, única forma de a conceber, é a Justiça inatacável. E, no ponto de delírio que tocámos, o mais triste, o mais trágico e o mais inquietante é o quadro funesto, já impossível de disfarçar ou de esconder, de uma Justiça profanada especialmente, direi mesmo quase exclusivamente, por aqueles que têm obrigação redobrada de lhe prestar culto – os hierofantes que envergam uma beca, em vernáculo, os Magistrados!

Valha-nos, ao menos, o facto de já não se poder ocultar este panorama. Assim, também o povo só andará iludido se quiser. Convém ter em mente que não são pequenas as culpas por parte do cidadão comum: muita bulha, mas lá reagir, isso não é com ele, seria pedir-lhe demasiado. Em cada mesa de café, de um instante para o outro, pode erguer-se um estado-maior da reviravolta, e as ruas são um passeio colorido de cartazes e bandeiras para os que gostam de vociferar ameaças de mistura com alguns gritos patrióticos. Além disto, nada! E, neste Carnaval, se esgota a coragem. O cúmulo é que ainda haja quem refute a conclusão de que a desordem revolucionária gerou uma sociedade de egoístas e acomodados, sem grandes horizontes, mas principalmente sem um rasgo de valentia.

Correcto seria que todos fôssemos agentes de Justiça. Em contrapartida, que se vem observando? – Criou-se o mau hábito de reduzir os agentes de Justiça a uma classe. A um maior crescimento de profissões de fé nas virtudes da Democracia e sonoras proclamações de princípios a condizer, observa-se que os lacaios do sistema correspondem fechando-se cada vez mais em castas intocáveis. Presto homenagem aos correligionários que ali tenho: no seu foro íntimo, esses lacaios devem acreditar na Democracia tanto como eu!

Em vez de favorecidos do sistema, optei por falar em lacaios do sistema. Fi-lo intencionalmente: são lacaios porque muitos deles nem sabem que amo servem. Quem é esse senhor? – Não importa! A eles, basta-lhes satisfazer a ambição de participar no poder, envoltos na capa de uma titularidade mistificada, e abarrotarem de contentamento por experimentar essa vertigem que afaga os sentidos, pese embora, neste caso, os venha tornar incapazes de medir a profundidade do ludíbrio em que tombaram. Mas este logro não os aflige: o que lhes interessa é que foram poder. Essa volúpia, ainda que dure pouco, transmite-lhes imensa vaidade pela falsa convicção de que foram alguém quando um dia mandaram. À sua maneira, por um curto espaço de tempo, foram reis de um reino fantástico, acharam compensação para muitas frustrações, enfim, gozaram. Daqui, não é grande o prejuízo que resulta. O pior, a mais ruim consequência está no que fizeram e, sobretudo, no que não fizeram. Transposto para a esfera política da actividade judiciária, o desastre mais grave é quando alguns Magistrados se esquecem da sua condição, e tomam a forma de medonhos e repelentes lagartos.

Caiu em desuso falar-se do pecado social. Não o estranhemos, porque até o pecado individual anda hoje muito esquecido. E, no entanto, um e outro existem. O pecado social é o somatório dos pecados individuais. Pelo pecado individual assim como pelo pecado social, os homens pagam. A História Sagrada, ao lado das profanas, está repleta desses castigos em que Deus consente para escarmento dos povos, e cujo significado é ocultado por bocas que se calam em vez de o anunciar. Mesmo os não-crentes na força de um Espírito vivificador, se forem intelectualmente honestos, não podem negar que desmandos, como os que hoje sofremos, cedo ou tarde traçam sempre um rumo que conduz à devida punição.

Em 1755, sacudida por um sismo inclemente, Lisboa ruía violentamente. Este fenómeno físico parecia anunciar o cortejo das comoções sociais que se lhe seguiram: o regalismo monárquico, sob a batuta de Pombal; uma guerra civil bastante cruenta; o liberalismo, que inaugurou uma época pejada de lutas intestinas; o jacobinismo republicano, dando consagração aos ideais dos enciclopedistas franceses e cujo primeiro brado de vitória já soara nos cânones do liberalismo; por fim, a situação em que nos debatemos. Como identificar esta fase? – É o período da decomposição! Não vejo que outro nome possa dar-se-lhe, a não ser este. Para os tíbios, parece ser hora de proceder a inventário.

As etapas anteriores foram nefastas e tiveram o propósito de conduzir-nos até onde nos encontramos: indiferença ou desânimo, como atrás se referiu ao tratar da ausência de toda e qualquer reacção eficaz. Conquanto perverso, havia um objectivo nos sistemas que vigoraram nessas alturas e, portanto, podiam ser classificados. Mas agora? – Já acima ficou dito: chegou a hora da decomposição ou dissolução! Isto, porém, não cabe em nenhuma categoria conhecida da ciência política e, desta vez, o vazio vocabular traduz bem a desolação que se vive.

A nota saliente deste macabro desfile assenta num denominador comum – chamam-lhe Democracia, essa coisa obscura que não chega a definir nada, porque a sua definição teórica não tem correspondência na vida concreta. A Democracia é a crença dos maus e dos fracos de espírito: uns e outros, no fundo, são dignos de dó, porque a Democracia, para eles e para os que não comungamos dessa superstição, é o caminho do suicídio colectivo.

Se assim fustigo a Democracia, porque são tantas as culpas que, desde há anos, lanço asperamente sobre alguns membros da nossa Magistratura, e às quais aqui volto nas palavras que deixo escritas? Afinal, onde está o culpado? – Não custará muito compreender a razão pela qual aponto as baterias sobre os Magistrados, uma razão que é minha e que, obviamente, não colherá o apoio de todos, possivelmente de ninguém, mas também confio que não será rejeitada com o fundamento de ser incoerente.     

A questão é muito simples. Ao longo dos tempos e até aos desconchavos modernos, o poder judicial era o mais forte sinal de soberania, a sua nota mais distintiva: soberano sem poder judicial ou julgador sem soberania, aborde-se o problema pelo lado que se quiser, era uma quimera e, como quimera sempre esta matéria deveria ser considerada. Em Portugal, os próprios Reis, entre todos os atributos de uma soberania plena, prezavam especialmente a missão de julgar. Delegavam este ofício nos Juízes da Corte, mas não se despojavam do poder que andava inerente àquela função e do qual eram senhores. Guardavam-no ciosamente. Era prerrogativa exclusiva dos monarcas o exercício de misericórdia para com o condenado e, deste privilégio, nunca abriram mão. Movia-os, tudo o leva a supor, o sentido da prudência e um autêntico impulso de caridade, mas aqui só importa ver a manifestação da sua majestade como soberanos que eram. Tão fundas eram as raízes desta legitimidade que os dogmas liberais não a subtraíram à esfera de competência da Coroa, antes a confirmaram, atribuindo-lhe a força necessária ao uso do direito de graça ou clemência. E as instituições republicanas também conferiram poder equivalente àqueles que representam o Estado.

Bem parece, pois, que este vestígio de um antigo poder associado a outro, que era o poder supremo, mostra a grande parcela de verdade que há na conexão entre o princeps e o iudex. No entanto, não fiquemos por aqui:

No seu enunciado abstracto, nem a decantada divisão de poderes, outro dos novos ídolos, mito tão irrealizável como a Democracia, apesar da utopia que é, mesmo ela não consegue roubar ao poder judicial o lugar que justamente lhe pertence. Por breves instantes, dentro de uma linha meramente especulativa, admitamos o que, num raciocínio honesto, de modo algum se pode conceder. Imaginemos, então, que a proclamada separação se dá. Nesse caso, logo descobriremos os predicados que o poder judicial ostenta: órgão independente; fechado sobre si mesmo; e o único órgão de soberania que escapa ao negativíssimo sufrágio popular. Nem a corporação militar exibe tão pujante força.

A Magistratura, na qualidade de corpo visível do poder judicial, que o é indisputavelmente, com particular destaque a Magistratura Judicial, esta classe detém a vara da Justiça. O seu poder é predominante e decisivo: predominante, porque os seus comandos preferem aos de todas as outras autoridades;2 decisivo, visto que, a par da propriedade acabada de assinalar, se a Magistratura tropeça, com ela falha o poder judicial, e mesmo que o restante aparelho político funcione, vem tudo a terra, já que não é razoável aceitar que se faça Justiça, onde grassa a anarquia. Isto diz bem a quanto monta o poder judicial porque se ele, isolado, é impotente para fazer respeitar a ordem, basta que se demita dos seus deveres para, inelutavelmente, reduzir a zero os outros dois poderes. Daqui, a grandeza do poder judicial e, ao mesmo tempo, a sua imensa responsabilidade; também, por este motivo, ele é a jóia mais preciosa da soberania.   

Por isso, as censuras a certos Magistrados constituem o tema central deste documento. Em qualquer grau de saúde pública, seria curial a minha análise; nos gravíssimos momentos que atravessamos, muito mais ela se justifica. Se, na balança da Justiça, o fiel reside na Magistratura, é da mais elementar higiene mental não olvidar que a espada está com as Forças Armadas. Quando o fiel não encontra o correcto equilíbrio da balança, nunca será excessivo lembrar que a espada vem corrigir esse defeito. É lição inexorável da História!


Joaquim Maria Cymbron

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  1. O Grande Governador da Ilha dos Lagartos, Cena Primeira.
  2. CRP art. 205.º, n.º 2.

 JMC