Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

domingo, 20 de março de 2016

A MINHA PÁSCOA


Na sua liturgia anual, a Igreja Católica prepara-se para celebrar a Páscoa. Páscoa, em idioma bíblico dos Hebreus, significa passagem. Constitui uma festa judaica, instituída para recordar a saída daquele povo do Egipto e subsequente passagem do Mar Vermelho para a Terra da Promissão.

A Teologia cristã colheu essa herança e, no sangue do cordeiro pascal, o qual  lembrava o sinal  que salvou os primogénitos de Israel, vê o Sangue preciosíssimo derramado por Jesus, que nos faz passar da morte do pecado à vida da Graça.

A minha Páscoa não tem, obviamente, esta grandiosidade. É bem mais modesta. Limitei-me a transitar de uma pena de prisão domiciliária1 para a normalidade do quotidiano de um comum cidadão. No entanto, a punição sofrida teve o mérito de revelar o que eu já sabia. E qual é esse quid?

Isto, muito simplesmente --- manifestação de prudência! Por parte de quem? --- Dos elementos da DGRSP, encarregados do correcto cumprimento da minha pena. A prudência é a mais caprichosa de todas as virtudes cardeais, porque isolada não se compreende; e, faltando, nenhum comportamento humano é virtuoso!

Lucrei, pois, com a pena imposta, porque fui confirmar o que já pressentia. E também voltarei a ganhar com qualquer outra punição, deste ou de outro tipo, que os poderes judiciais me venham a infligir, se assim o resolverem.

A terminar:

1 - Nenhuma reacção jurídico-penal fará com que eu me desvie do caminho da censura, onde achar que cabe censura;

2 - Espero que todos os nossos Magistrados (e não apenas alguns, como sucede) mostrem recta intenção.

3 - Seria também saudável que estivessem mais próximos dos centros de execução das penas, e mais afastados de etéreas e mirabolantes doutrinas do Direito.

4 – Na verdade, se lidassem mais com os condenados e folheassem menos compêndios de nebulosas teorias, ainda poderíamos esperar a luz  da prudência nas suas mentes e correspondente império nos seus corações.

5 - Confortados por aquela virtude, já se tornaria razoável acreditar que as suas sentenças iriam espelhar a Justiça.
 
Joaquim Maria Cymbron

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  1. Esta pena foi aplicada em consequência da condenação sofrida no P. 255/14.3 TAPDL, o qual é efeito de outro. O primeiro dos dois ainda não passou a este blogue. Pelo seu gravíssimo conteúdo, foi considerado por mim merecedor de estudo mais aturado. Além disso, aguarda melhor oportunidade para publicação. Entretanto, só não direi que é o mais criminoso dos três porque, ao longo do conteúdo deste blogue, difícil será encontrar decisões conformes à lei.
JMC

terça-feira, 1 de março de 2016

O NIILISMO E A MAGISTRATURA


Como o penúltimo, vai este texto publicado nos meus dois blogues, pela mesma razão apontada naquele lugar.

Vai muito de moda uma filosofia que se esgota a entoar hinos de louvor ao nada. É uma filosofia de aniquilamento, porque expressa decisivamente a recusa da vida antes mesmo dela brotar. É pior do que cortá-la onde existe, uma vez que, deste modo, tende-se a condenar o Ser à morte, no seu trânsito de potência a acto. É um pecado ontológico e um violentíssimo atentado aos planos de Deus. Como tantos outros desacatos à majestade Divina, este é mais um acto de vesânia colectiva, no enfiamento de outras fortes explosões de uma sanha dementada que se vem assenhoreando do homem, desde que foi criado. E trata-se de uma fúria cega que lentamente o vai escravizando, empurrando-o sem cessar, de corpo e alma, até à beira de um lance irreversível: o suicídio colectivo. Nunca, como agora, foi tão pertinente o aviso de S. Paulo!(1)

Este desconchavo irá tocar o seu objectivo? Não há motivo para recear fim tão terrível, embora muito seja já o estrago semeado por esta doutrina de negação. Onde se funda esta convicção? --- Na certeza da força intrínseca do próprio Ser ameaçado! De facto, a inteligência do homem é incapaz de abarcar o Infinito. Por outro lado, conceber o nada é tarefa impossível. É simples a razão disto: enquanto o Infinito atrai e seduz, o nada repugna à nossa mente!

À volta do Ser, o niilismo é a mais aberrante degenerescência que atingiu o pensamento humano. Se até ao presente, muitas teorias se desenvolveram para explicar o Ser, bom número delas eivadas de erros gravíssimos, o certo é que nunca se viu alguma cujo propósito, visível ou pelo menos confessado, fosse de reduzi-lo a pó. Os próprios materialistas possuem uma crença inabalável na infinitude e na eternidade da matéria. Por isso, levam  vantagem irrefutável sobre os niilistas, legião malvada, soma monstruosa de tantos delinquentes, uns mais tresloucados que imputáveis, os quais nem se dão conta de que, no combate que desenvolvem para aniquilar o Ser, fazem contraditoriamente a mais sonora profissão de fé na sua existência. Ninguém luta contra o vácuo!

Em política, o niilismo é o caminho que aproxima a sociedade da anarquia, conquanto possam nem tomar consciência disso os seus mais aguerridos militantes. E é esclarecedor o facto de as mais destacadas correntes do anarquismo, na base das suas organizações, exibirem uma disciplina férrea que as dirige na rota traçada. Realmente, até o próprio fogo necessita de oxigénio para arder: nem as labaredas sobem ou as chamas crepitam, se o ar lhes faltar. Como o niilismo, a anarquia não desmente a procedência e, nessa qualidade,  é outro embuste. Mas não deixa de constituir um perigo e, por isso, requer contra ela as normais medidas de precaução e de combate a qualquer outro perigo.

Quando os detentores do poder caem, as sociedades, se já estavam em crise, depressa se afundam, mais e mais, até jazer num estado comatoso. Ao dizer poder, subentenda-se o poder real e efectivo, não certamente aquele poder fictício e ilusório saído da caprichosa volubilidade das urnas. Nas comunidades onde, não obstante o colapso quase total ao qual se acabou de aludir, ainda sobram algumas reservas morais e há órgãos que conservam a vitalidade suficiente, a esperança não está necessariamente morta: a gente válida preenche o vazio deixado por outros. Porém, como se disse, isto sucede se há e quando há gente capaz; de contrário, é mesmo a desolação do vazio!

As Pátrias devem quase nada a legistas ou a homens da finança: deles, escassas, mesmo escassíssimas, são as páginas que a História aferrolha nos arquivos da sua memória. As Pátrias são obra de soldados e de missionários, cimentadas no sangue de quantos combateram nas hostes da Virtude, e terminaram mártires pela causa do Bem.


Portugal formou, outrora, um grande e radioso império; desse conjunto imenso resta-nos, hoje, um montão de destroços, por entre os quais se multiplicam larvas dos mais repelentes vícios.

Aquela construção magnífica, lentamente minada, acabou por dar em terra. Não! Não se comece, de novo, no berreiro costumado de que foi o 25 de Abril que a derrocou: o golpe vibrado, nesse dia, fez apenas de camartelo num edifício que já abria fendas por todos os lados. A desorientação, desde então vivida, aflige, quase por inteiro, um povo perdido no que ficou do seu antigo Lar. Poucos escaparam e, mesmo desses, nenhum se mantém livre dos efeitos deletérios do debilitamento moral que nos cerca. Na ordem temporal, tudo ruiu, mas choca especialmente comprovar o modo que arrastou uma prestigiada corporação a entregar-se, vencida, debaixo do entulho criado --- é a classe de Magistrados!

Esta é a tragédia que trouxe o luto a Portugal, um luto que perdura. O que existe é fumo e o fumo não se apaga --- o mais que se pode fazer, é arejar a casa; mas, se escancaramos uma janela para que o fumo saia, logo outra se abre para lhe dar entrada. Deste fumo, repita-se, a nuvem mais negra e espessa é formada por uma parte da Magistratura.

Legistas e financeiros são os parentes pobres de qualquer Pátria. Isso já foi assinalado; cabe agora completar que não se trata de pobreza material, como aliás logo se intuiria pela presença de financeiros neste triste rol. A condição pobre, de que padecem, é de ordem moral, de uma ponta à outra: a quase todos eles, o que falta é elevação de miras e nobreza de ideais. De entre o grémio de legistas, sobressaem os Magistrados! No presente momento, de alguns deles só não pode dizer-se que são os mais nocivos elementos inseridos na actual sociedade portuguesa, porque, quedarmo-nos por aí, está como se fosse vazio de conteúdo: representam, de momento, uma das deformações mais temíveis no palco da nossa política. Um homem, qualquer que seja a sua fé religiosa, o seu torrão natal, a sua raça, a sua crença política, ou o seu estrato social, isto é, independentemente de ser cristão, judeu, muçulmano, budista ou de outra religião aqui não mencionada; se a sua língua materna é o português ou o chinês; se é branco, negro, amarelo ou pele-vermelha; se alinha à direita ou à esquerda na acanhada dicotomia em que se convencionou dividir o universo político; se as suas origens andam perdidas no meio de gente anónima ou foram embaladas em berço de ouro, esse homem, seja ele quem for, nunca estará legitimado para impor o seu querer a ninguém, a menos que o faça em nome de um poder soberano que lhe é superior. E o seu governo dir-se-á recto ou tirânico, consoante realizar ou não o bem comum.

Se o autocrata ou o democrata (este espécime por definir), a que se juntam um ditador ou um demagogo,  pretendem exercer o seu imperium sem referência a um princípio transcendente, em vão trabalham e acabarão derrotados. Quando os homens esquecem aquela ordem de coisas, que aponta para um valor que está acima dos mortais e é o único caminho apto  a conduzir todos à paz onde reine a Verdade, sempre que voltam costas a esse padrão, insiste-se, é o relativismo ou o indiferentismo que se instalam por culpa dos que assim agem e dos que se mostram passivos diante desse feio crime. Daí, a facilidade e a frequência com que os modernos próceres se acham dignos de emparelhar com os antigos triunfadores das eras clássicas, e daí, também, que a embriaguez dos sentidos lhes pinte um horizonte imaginário com as mais febricitantes cores. É, pois, num completo desvairo de sensações, que estes dirigentes aziagos, autêntica vanguarda da desgraça, ensandecidos por um ambiente  em que já quase se medem, ou se medem mesmo, barba por barba, com os velhos deuses, se revolvem na volúpia de se julgarem intocáveis. E, de despautério em despautério, lá vão, com a maior impudência, tomando assento nas regiões etéreas do Olimpo, essas áreas defesas aos mortais.

Criou-se assim uma mitologia mais grosseira que a do paganismo da Antiguidade: o politeísmo desses tempos, ao menos, punia severamente os deuses que prevaricavam; os que topamos diante dos nossos olhos, esses absolvem-se uns aos outros. É a caridade evangélica virada do avesso porque se perdoa ao impenitente, e isto redunda na estreme glorificação do Mal. E é igualmente o resultado daquilo que se vive: as sociedades perderam o sentido do espiritual e, em Portugal, não fugimos à regra. Ao mesmo tempo, este fenómeno não deve surpreender, pois a mediocridade, que campeia, precisamente por ser isso mesmo, também não é muito exigente. Pouco se pede para chegar ao grau de apoteose: para os deuses que temos, pequeno foi o esforço para ascenderem ao Olimpo.

Mas no que aqui se vai tratando, não se começou por falar em niilismo? Porquê, então, associar  os maus Magistrados a esta doutrina? --- É simples o processo que estabelece esta relação e nem tem que estranhar:

Aqueles Magistrados, com o seu comportamento, mareiam a fama e o lustre dos Tribunais, precisamente quando e onde deles se esperava que observassem o dever de viver com dignidade, servindo com escrúpulo no exercício da missão do combate que se propuseram travar em prol da Justiça. Daí, por parte dos particulares, segue-se a perda de confiança naqueles órgãos, o que cede o passo à anomia. Tal resultado produz gravíssimas consequências porque sociedade sem leis é como o indivíduo a quem falta a consciência. Se a consciência existe, ela mesma se encarrega de refrear os desatinos da nossa inteligência e as paixões do nosso temperamento; mas quando ela falha (e se falta não pode necessariamente cumprir o seu papel), então, a repressão vem de fora, por mais niilismo que se apregoe, porque a vida, principalmente a vida social, é impossível sem regras.

A sociedade actual (o fenómeno não é de cunho exclusivamente nacional), a sociedade que ouviu a mensagem luminosa do Cristianismo, uma parte dela está bestificada e, o que resta, são figuras sepulcrais que deambulam como  se fossem corpos narcotizados. É uma massa informe que perdeu a noção do sagrado. O homem, se esquece a Divindade, sempre sentiu a necessidade imperiosa de criar mitos ocos, de agarrar-se a fábulas vãs, conforme se verifica em todos os movimentos de ideias, sobretudo desde que a concepção do Mundo passou de teocêntrica a antropocêntrica. Essa viragem marcou o começo remoto da crise onde viemos cair. Numa sequência de eventos, que ocorreram em linha recta e sem quebras, as revoluções, sem parar, sucederam-se umas após outras, ora no campo espiritual, ora no temporal. Neste desfile de destruição, cortejo de uma pompa marcadamente fúnebre, de tons a anunciar o desastre, assumem proporções de destaque o Humanismo ao lado do Protestantismo; o Racionalismo afogado na água benta do Deísmo; o Iluminismo de braço dado ao Regalismo; os Imortais Princípios, fonte viva de uma série incontável de desgraças, na Europa e por onde se derramou a sua catequese; o Individualismo Liberal fundado no Naturalismo, germe de muitas convulsões, código de desordens nefastas, tanto no âmbito político como no económico, e que foi embrião dos Totalitarismos, de cujos efeitos o passado século se transformou, simultaneamente, em testemunha e em vítima; por fim, o Materialismo, ascendente mais próximo e mestre mais directo da praga niilista.

A Fé parece sumir-se. Mas como há-de o homem moderno guardá-la, se vai abandonando a convicção na capacidade do pensamento para se aproximar da Verdade ontológica? E a Verdade inteligível para o homem que a busca, de coração humilde, já disporia esse mesmo coração a aceitar a mensagem transmitida pelo Verbum Dei. É pelo menos uma ponte de Salvação! Fides quaerens intellectum, era este o lema inspirado de S.to Anselmo de Canterbury. (2)

Ao menos, o ateu, se confia nas virtualidades do próprio entendimento, pode ainda, pela via do raciocínio, chegar até ao princípio absolutamente causante, o único Ser ao qual convém a existência eterna porque essa é a Sua essência. Este Ser é Deus, o Alfa e o Ómega de toda a Criação, e exactamente por isto, Ele é também o ponto culminante de toda a razão humana. O que tem particular relevo no tema aqui abordado, pois esgotando o fim último da nossa mente, é óbvio que o agnóstico, fora o caso de ser confortado pela Graça, de forma específica e muito intensa, está impedido de gozar de tal deleite, porque ele próprio foi quem cerrou os olhos ao trajecto para tão sublime visão. De facto, quem duvida de que o pensamento está dotado para obter certezas legítimas, que escapam à experiência imediata, certamente não pode voar tão alto!

Se a anarquia, recorde-se, traz colado o rótulo daquilo para que tende o niilismo em política, já o agnosticismo deve ser proclamado como o elo da corrente que desemboca no niilismo do pensamento. Ora o homem tem sede de Infinito, e o agnosticismo é um deserto onde ele não pode matar, na fonte do conhecimento, aquela sede ardente que o abrasa. E isto é a causa pela qual o niilista está condenado a desaparecer, esfumando-se nas sombras de um mundo irreal que um dia, num delírio infrene, sonhou.

Da Teologia à Fé, mutatis mutandis, há uma relação análoga à que separa o Direito da Justiça. Com efeito, a Teologia, dentro de métodos rigorosamente científicos, expõe os tesouros que a Fé nos revela, enquadrando-os em categorias sistemáticas. Salvaguardadas as proporções, que se impõem, o Direito propõe-se alinhar aos nossos olhos um ideal de Justiça. Se quem maltrata a Teologia, decai na Fé, o que tripudia com o Direito, arranca  da Justiça uma imagem pervertida.

O Direito, é sabido, constitui o meio de realização da Justiça. Quando se duvida da integridade do meio, não faz sentido falar do fim, dizendo que esse fim é o escopo do nosso empenhamento. Na verdade, se o artífice despreza o instrumento que tem à mão, só a ingenuidade acreditará que ele seja capaz de criar o que se espera do seu engenho. Haverá, porventura, alguém tão doido que sinta segurança num culto, onde os próprios hierofantes não estão certos dos arcanos que proferem? Desde quando a incerteza é fonte de conclusões firmes e credíveis? Pois isto é o que fazem os Magistrados que se entretêm a discorrer esterilmente sobre minúcias de grande complexidade, mas de transcendência nula, em lugar de estabelecer bases duradouras que podem levar a um ideal de Justiça. Jogam com elementos avulsos e separados uns dos outros, que são mantidos isolados entre si, em consequência de uma teima de quem não quer ver a unidade que é suporte de todos eles. Contudo, não é este o seu maior defeito: o mais grave tem outra causa, e explica a razão pela qual se mostra improdutiva a tarefa em que se consomem, como quem quisesse reunir num todo harmónico pedaços fraccionários, desconexos na forma e, não poucas vezes, até na substância. Eis o resultado de uma herança nada gratificante, que eles aceitaram e fizeram sua, sem se interessarem com a juridicidade do pecúlio que receberam.

Só o respeito pela Lei Natural é capaz de fornecer uma base sobre a qual  repouse um edifício jurídico onde brilhe o fulgor da Justiça, na sua Unidade, na sua Verdade e na sua Bondade. Sucede que o património intelectual do acervo hereditário que, por grande infelicidade, os nossos Magistrados recolheram, é hostil aos valores imorredoiros da Filosofia perennis. Ocultando intencionalmente ou, no mínimo, desconhecendo os primeiros princípios da Metafísica, estes Magistrados não evitam a colisão ou o divórcio com os atributos transcendentais do Ser. E esse choque ou esse afastamento impedem que as suas decisões tenham harmonia porque, a maioria das vezes, carecem de Unidade; não chegam igualmente a manifestar a indispensável claridade, porque com batante frequência estão privadas de Verdade; e raramente são íntegras porque quase nunca têm Bondade. E, por tudo isto, seguramente, é que têm dificuldade de ser justas!

Deste quadro de ebulição conflituosa, não devemos admirar-nos: é a obra do niilismo na dupla vertente que tem e que agora volta a lembrar-se --- a política e a filosófica. Numa ou noutra destas duas acepções, são peçonhentos os seus frutos; e quando isto não são, tornam-se pecos que é outra espécie de veneno, porque é sinal de que vem próxima a morte.

Como se não fosse suficiente o que se descreveu, que é o mais importante da questão, que tem o papel mais influente no desatino que nos rodeia e que é, decididamente, o nó da miséria que nos envolve, como se isso não bastasse, reforce-se a ideia, falta pôr no prato da balança, a mentira que certos Magistrados escolheram como estilo a adoptar quando se pronunciam do alto das suas funções. Esta mentira, em que alguns Magistrados abundam, em número superior ao que a tolerância  poderia desculpar, tem a sua dose de gravidade. Dá-se essa mentira sempre que aquele, que a solta, diz que é negro onde vê branco, ou vice-versa. Já não é um transtorno mental, saído de um pensamento turvado por filosofias perniciosas consoante tem vindo a ser exposto; trata-se agora de um desvio moral na consciência de quem assim procede. Este desvio, em princípio, não tem efeitos tão devastadores como os obtidos quando há um típico e inequívico logro do pensamento que se estende imparavelmente e lança confusão na sociedade. A mentira pertence ao foro interno de cada um. Nessa condição, não se pode perscrutar com o mesmo espírito e rigor de censura: é uma falsidade individual, e o seu juízo de reprovação terá sempre de atender à boa ou má fé do autor. Entretanto, os erros do pensamento podem e devem ser atacados, independentemente do impulso moral que lhes está subjacente: os seus vícios transportam uma dimensão objectiva e, com ela, a carga de imputabilidade é muito mais pesada. Portanto, culposo ou inocente, deliberado ou involuntário, premeditado ou mero reflexo automático, o erro do pensamento não tem de esperar tréguas. Em suma: não cabe comparação entre os danos resultantes da mentira moral e os que uma falsa corrente de pensamento é capaz de produzir. A primeira corrompe essencialmente o seu autor; a segunda tem um intenso poder de contágio. Por isso, é que a reacção não deve necessariamente ser a mesma, num e noutro caso. De resto, é isto que se infere pelas linhas anteriores. E assim podemos condensar: a alguma indulgência com a mentira moral, há-de corresponder uma severidade máxima para com as doutrinas subversivas. Isto se quisermos evitar a extinção do que ainda resta de civilização, o que continua a ser viável!

É altura de concluir:

Apenas para repisar a mensagem de fundo, que aqui se transmitiu, e fazê-la sobressair, convém lembrar que, se é válida a analogia atrás enunciada, nos termos ali expostos, de que está o Direito para a Justiça, assim como se encontra a Teologia para a Divindade, só deixará de ser adequado afirmar, de um número relevante de Magistrados, que são heresiarcas genuínos da religião da Justiça, quando repararmos que, para isso, é preciso estatura, uma estatura que eles já revelaram, à saciedade, não possuir.

Com efeito, na hora que vivemos, os nossos Magistrados não conseguem ser mais do que acólitos dos amos da Desordem que grassa!

Joaquim M.ª Cymbron
_______________________________________________
  1. 1 Cor. 6, 12
  2. Cit., Historia de la Iglesia Católica, II, P. 2,c. 15, III, 2. 

 JMC

sábado, 13 de fevereiro de 2016

RESPONSABILIDADE MAIORITÁRIA E RESPONSABILIDADE MINORITÁRIA?!


O título que pus em mais um texto deste blogue, induz-me a celebrar a sorte que tem a Senhora Procuradora pela certeza de não existir o nada. Caso contrário, no comportamento descrito na carta que segue e da qual é ela a destinatária, não haveria nem uma responsabilidade maioritária, nem minoritária, porque seria de uma irresponsabilidade infinita!

 
P. 290/14.1 TAPDL
DIAP
1.ª Secção


                                       Dig.ma Procuradora-Adjunta

Senhora Procuradora:

O despacho de arquivamento do inquério, no processo à margem referido, é bem o reflexo da jurisprudência que, até hoje e comigo, se tem observado nesse Tribunal de Ponta Delgada.

A decisão de V. Ex.ª é o resultado, pelo menos, da criminosa gravação efectuada na audiência de julgamento, a mesma onde se consumou o facto que imputei ao arguido. Com uma gravação daquelas, todas as fantasias são possíveis quando há o propósito de ilibar quem foi denunciado e mesmo que tal intuito não exista.

Não me refiro já à versão do arguido: é sabido que são raros os que respondem em juízo com franqueza e nobreza bastantes para se confessarem culpados. Faz parte da natureza humana e, ainda que não dignifique, é comum este comportamento. O que afirmo é particularmente verdadeiro em processo-crime. Tanto assim é que a lei não pune o arguido que, relativamente à matéria dos autos, incorra em falsas declarações, não porque ele tenha um direito de mentir, mas sim por não poder ser-lhe exigido que conte a verdade, o que cumpre à acusação descobrir. O mesmo não direi quanto ao depoimento do Segurança, porque as testemunhas têm o altíssimo dever de não faltar à verdade.

De resto e já sem falar do silêncio quase absoluto do CD a que acima me referi, defeito que será estranho para quem não conheça o estilo seguido por esse Tribunal nas causas em que apareço com um interesse directo e pessoal, para esses, insisto, é deveras curioso que V. Ex.ª se haja contentado com uma única testemunha. Sendo o crime denunciado um crime semipúblico (CP art. 143.º, n.º2), cabe igualmente ao MP tomar o impulso necessário ao apuramento da verdade e, na sequência disso, o mesmo está obrigado a esgotar os meios adequados para atingir aquele fim. Não peço que se tivesse procedido à inquirição de todos os presentes na sala de audiência. Isso tornar-se-ia dificílimo de realizar. Mas pergunto: porque não foi chamado a depor o M. mo Juiz de Direito; a Dig. ma Procuradora-Adjunta; a Ilustre Defensora oficiosa; o agente-principal da PSP João de Medeiros; a sua colega Maria Barbosa? Repito a pergunta: porque não foram estes ouvidos? Repare V. Ex.ª que não peço explicações para o facto de ser inoperante a audição do CD, onde era de esperar que se encontrasse a gravação da audiência. Já falámos disso e agora apenas acrescento que o responsável imediato por este registo oco, chamemos-lhe assim, foi precisamente o arguido nestes autos. Muito conveniente, não tem dúvida! E nada insuspeito, é ainda mais claro.

Foi mera coincidência o nexo entre o efectivo comportamento do arguido e a deficientíssima gravação? Todos sem custo vemos que não passa de uma genuína casualidade de pormenor, uma perfeita ninharia à qual só gente maldosa pode atribuir intenções veladas. Mas não estará na gravação, com a qualidade que tem, ou a falta dela, não reside ali a resposta para o que veio a seguir no P. 255/14.3 TAPDL? Não devemos buscar nela o motivo pelo qual o colectivo, que me julgou, terá desconsiderado factos articulados pelo MP, decidindo que não foram provados? Toda essa matéria rejeitada, por não provada, foi tirada do CD, e tinha de lá estar, porque, à parte alguns trechos mal reproduzidos, de facto e substancialmente, eu proferi as expressões que figuram na acusação. O pior é que, se serviam para minha condenação, já seria fortemente intrigante que não se ouvissem os segmentos que deporiam contra o arguido. Por isso, qual o caminho? --- Fechar o bico ao CD!

O CD foi junto àqueles autos e exibe dois períodos distintos, nitidamente separados: um, onde o MP foi colher prova suficiente para me levar a julgamento; e o segundo, que importava delir e esquecer para evitar comprometimentos. Julgo escusado acrescentar que V. Exª acariciou o CD, na sua fase terminal, já muito combalido e gasto pelo tempo, que é verdadeiramente assassino, não perdoa e deixa sinais de ruína: acompanhou-o e arrancou dele o pouco que sobrava, isto é, praticamente nada. Esses restos, por estarem quase sumidos, vieram a revelar-se proveitosos e cómodos para o arguido. Porém, o arguido não foi o único a beneficar com as marcas de erosão que o CD apresenta: o M. mo Juiz de Direito também ganhou com isso. Com esta, é a terceira vez que, nesse rincão fértil em servir-me frutos amargos, volto a ser prejudicado pela danificação de documento!

A alegada responsabilidade maioritária, que recai sobre mim pela lesão da qual me queixo, é um autêntico primor. Não fica certamente atrás do brilho alcançado por outras decisões que daí brotaram e se avolumam na coluna do meu passivo. Se há uma responsabilidade maioritária, tem de existir outra, que será a minoritária: pela maioritária, como V. Ex.ª tão bem sabe que até a refere, já paguei; e quem satisfaz a sanção legal pela responsabilidade que ainda não está liquidada? Ou sucederá, afinal, que «a lesão sofrida pelo ora denunciante só ao mesmo é imputável, (...)», conforme V. Ex.ª discorre logo abaixo?

Em que ficamos? A responsabilidade é partilhada, conquanto desigualmente, ou é minha, na íntegra? São inconciliáveis estas conclusões. No entanto, V. Ex.ª não hesitou em formulá-las. É flagrante a contradição nos fundamentos. Mas não se amofine V. Ex.ª pois assim é que se situa na linha do comportamento mais ortodoxo que esse Tribunal assume, por uso e costume, quando sou demandado em juízo, ou lhe bato à porta a pedir Justiça.

Como V. Ex.ª há-de calcular não apontarei aqui as causas do que sustentei ao longo desta peça. Está reservado para o caso de alguém ter a afoiteza de me mover mais um procedimento criminal. O que não creio que venha a ocorrer. Não há coragem para isso!

 Joaquim Maria Cymbron